DOGVILLE ( 2003 / Suécia etc / drama / 178’ ) de Lars von Trier – por José Roberto de Oliveira


Trata-se de um filme que como toda grande obra de arte admite muitas formas de compreensão e interpretação. Uma análise sociológica já feita por vários autores considerando ângulos diferentes desse mesmo foco permitiria dizer que se trata de uma crítica nem tão velada assim aos EUA, no sentido de retratar a forma intolerante como praticam seu poder e liderança sobre o resto do mundo. Diversas considerações e ilações filosóficas e psicológicas podem ser efetuadas. O que importa é que é um filme acachapante, que merece ser estudado em detalhes.

Existe um making of sobre a forma como seu diretor conduziu o processo de filmagem, alugando um galpão nos arredores da cidade e mantendo o grupo de atores em trailers, meio confinados, objetivando colocar em prática a sua visão sobre interpretação: não "representar" o personagem, mas efetivamente tornar-se, "ser" o personagem. Tanto que Nicole Kidman após a cena do estupro ficou mal a ponto de ter uma crise de choro intensa. Construíram uma espécie de confessionário no set, parecido ao que existe em realities como o Big Brother. Há um registro do depoimento da Nicole Kidman dizendo que passou a nutrir sentimentos negativos frente ao diretor, que nunca mais trabalharia com ele.

Muito interessantes as soluções cinematográficas conseguidas, os movimentos de câmera estranhos, o cenário absolutamente clean, ou melhor dizendo, a ausência de cenários, as inúmeras citações visuais e sonoras, a genialidade de fazer uma espécie de teatro filmado, com um clima conceitual, Brechtiano.

Deixando de lado as interpretações sociológicas, eu diria que o filme é uma metáfora sobre o surgimento e desenvolvimento dos conteúdos emocionais e intelectuais na conduta humana desde o seu começo até sua degradação, nas pessoas que fazem parte daquele lugarejo nas Montanhas Rochosas dos EUA, mas que poderia estar posicionado em qualquer lugar do mundo. O filme versa sobre quais são esses sentimentos e ideias, tenta explicar sua origem e mostrar seu desenvolvimento.

Frequentam aquele esboço social, aquela alegoria sobre a sociedade em geral, cerca de 15 pessoas que, de repente em suas vidas, veem-se na contingência de acolher alguém estranho, uma mulher lindíssima, que chegou ao lugar fugindo de algo desconhecido e atemorizante para eles. Acabam aceitando conviver com ela por duas semanas, em uma votação difícil porém unânime. A partir daí, todos os valores e comportamentos de adaptação da comunidade são colocados em cheque.

A situação lembrou-me muito em várias ocasiões os textos de um grande psicanalista inglês, um dos grandes pensadores da psicanálise, Bion, que procedeu a detalhadas análises exatamente sobre isso: grupos. As motivações individuais, diga-se, a somatória pulsional individual que se estrutura no convívio entre pessoas, a resultante final dessa somatória, o tipo de clima que vai se estabelecendo com o progresso desse convívio e com o entrelaçamento das resultantes pulsionais dos diversos membros do grupo. Os diferentes papéis que as pessoas acabam representando, as angústias, os desejos, os medos, a agressividade, complementares às vezes, a formação de "panelas", a cumplicidade, o comprometimento e às vezes a falência total do comportamento ético.

No filme, como frequentemente nos grupos humanos, existe até uma inversão total de valores, a catarse do final onde a "justiça", a filosofia ideológica enfim, o pragmatismo justiceiro, é praticado exatamente pelos gangsteres e não pelos responsáveis pela aplicação da justiça.

As propostas ideológico-filosóficas feitas sobre as desejáveis metas da comunidade por um dos personagens principais, uma espécie de líder, meio que incomodam aquele pessoal. É ele que introduz a estrangeira em Dogville. Costuma fazer reuniões tentando convencer as pessoas de assuntos que considera importantes, em função de sua ideologia existencial. Com a entrada em cena da estranha, passa a funcionar como uma espécie de observador do grupo. Fica totalmente passivo, aceitando o desenrolar dos acontecimentos, não assumindo nada, nem seu amor pela estranha, por causa do desejo meio vago de encontrar seu tema para se tornar enfim escritor. O não saber como manejar a agressividade crescente dos outros, deixa claro essa falta de "liderança pragmática", se é que podemos chamá-la assim, o oposto do que acontece com um líder pragmático com um objetivo, Moisés por exemplo, que sabe exatamente como e para onde conduzir seu povo.

Aliás, interessante como outra metáfora, o cachorro do filme (dog of the ville) se chama exatamente Moisés. Observe-se que ele é simbolizado apenas, não tem existência concreta. O lugar em que deveria estar é riscado no chão, como nos filmes policiais em que o risco mostra onde se encontrava o cadáver. O líder, no sentido da liderança pragmática praticada por Moisés, não existe na comunidade, pois o líder de Dogville por sinal nem foi eleito, é aceito provisoriamente, muito menos pelas suas qualidades que pelas necessidades dos liderados, exatamente como já constatara Bion sobre os líderes emergentes nos grupos humanos.

Os membros daquela comunidade não sentem necessidade afetiva nem cognitiva num primeiro momento, muito menos veem vantagem em relacionamentos interpessoais, daí sua falta de motivação às reuniões. As pessoas demoram um pouco para estruturar seus desejos quando colocadas em um grupo, fenômeno também observado e analisado por Bion.

O personagem que organiza as reuniões "democráticas" é tão abúlico e sem pragmatismo que faz pensar que poderia ser um portador da doença mental muitas vezes não constatada pela população, conhecida como Esquizofrenia Simples. Mesmo assim, exatamente como inúmeros mendigos da cidade grande, que se excluem do convívio social, que não tem proposta nenhuma para nada, muito menos propostas sociais, que não fazem absolutamente nada, têm apenas vagas idéias que nunca se concretizam, ele perturbava todo mundo com propostas pseudo-filosóficas que ninguém achava interessantes. E, no entanto, iam às reuniões. Todos precisamos de líderes, mesmo quando não queremos nada ou não temos objetivos. Parece se tratar de uma característica humana.

Enfim, como toda grande obra de arte, repito, admite muitas formas de compreensão e interpretação. A maneira como a Nicole Kidman arrasta aquele peso acorrentado ao seu pescoço, sua resignação com os acontecimentos, faz lembrar Cristo carregando sua cruz. Existe aí a citação de um fato religioso, porém com desfecho totalmente diferente. Também, como no proporcionado pela Paixão de Cristo, humano, excessivamente humano.


José Roberto de Oliveira

CLUB SANDWICH ( 2014 / México / Comédia / 82’ ) de Fernando Eimbcke – por Thaís Estrella


A descoberta da sexualidade como tema não é novidade alguma na cinematografia mundial. No entanto, a abordagem que o diretor Fernando Eimbcke faz dela em Club Sandwich é incomum o suficiente para motivar uma ida aos cinemas.

A película tem como protagonista Hector, um menino que passa alguns dias em um hotel acompanhado de sua mãe. Ali ele conhece Jazmin, garota com a qual passa a se relacionar amorosa e sexualmente.

Nessa corriqueira trajetória, o diretor traz atenção para minúcias que são percebidas muitas vezes por nós como banais, insignificantes. Simples brincadeiras aquáticas são transmitidas não como meras alusões à infância, mas como referência à ingenuidade e à pureza que circundam essa fase da vida. E essa inocência é o alicerce da relação entre o menino e sua mãe, que mais parece uma de suas amigas do que sua progenitora.

O início de uma relação amorosa entre esses dois jovens, Hector e Jazmin, poderia implicar em uma mera ruptura com essa ingenuidade. Porém ela não só modifica hábitos do garoto, como gera situações pra lá de divertidas. Mais uma percepção inteligente do diretor, que não se atém apenas aos ônus da desconstrução da relação mãe-filho anteriormente existente, mas também aos bônus da reconstrução de tal laço e da construção de um novo amor.

Essa trama lenta e sensível se diferencia daquilo que se veicula atualmente nos grandes circuitos, e por tal peculiaridade e simplicidade, nada mais justo que desfrutar do refrescante mergulho que Club Sandwich nos propõe.

Thaís Estrella

DÓLARES DE AREIA ( 2014 / Rep.Dominicana-Argentina-México / drama / 80’ ) de Israel Cárdenas e Laura Amelia Guzmán – por Cristina Paraguassu.


O filme começa com uma bela canção, um cantor idoso, prenúncio de um filme diferente da maioria dos que são feitos hoje em dia. É um drama, mas não há a maldade de se revirar vísceras, aliás, não há julgamento moral.

Noeli (Yanet Molica) e seu namorado Yeremi (Ricardo Ariel Toribio) são paupérrimos, habitantes do paraíso que deveria ser a República Dominicana. Ela se prostitui com clientes que chegam da Europa na rota do turismo sexual.

Com uma das turistas já está há três anos; como é tão jovem pode-se aventar pedofilia, mas também nada se diz sobre isto. A cliente é Anne, papel que Geraldine Chaplin teve a ousadia de fazer brilhante e humanamente. Após mais de 140 filmes na carreira, continua a mesma atriz corajosa. Em uma rápida cena ao celular descobrimos que Anne é uma mulher solitária , em péssimo relacionamento com o filho. A paixão que nutre por Noeli, a quem paga bastante bem por este relacionamento, alivia seu sofrimento. A frieza com que Noeli encara sua realidade sem alternativas aparentes é um toque de realismo que choca os mais desavisados. A miséria exibida no filme não se restringe ao dinheiro. Mostra com beleza poética e sem moralismo que ricos e pobres são feitos da mesma substância e sofrem igualmente - com a diferença que uns bebem vinho e outros água contaminada!

E a vida segue com cada um se arranjando como pode ou consegue, sem perspectivas de transformações. O filme mostra injustiça social, exploração sexual, assalto, miséria, mas não julga nada, apenas revela os aspectos humanos e este é seu maior mérito, junto com Geraldine Chaplin, que humaniza a turista europeia ao extremo.

Que o mundo deveria ser melhor, mais igualitário, haver mais amor, todo mundo sabe. Mas não serão visões maniqueístas ou a volta da guilhotina que farão isso acontecer. Talvez abordagens humanistas como a deste filme ajudem, mesmo sendo apenas um grão de areia, mas com um grande peso! Embora areia seja levada pelo vento...

Cristina Paraguassu

ÚLTIMAS CONVERSAS ( 2015 / Brasil / Doc / 85’ ), de Eduardo Coutinho e João Moreira Salles – por Dario P Regis



Coutinho conversa com nove adolescentes e uma criança. Já não é mais um mestre. É um analista por vocação convicta. Nas questões da alma humana, é um mago. No cinema, um entrevistador mordaz. Consegue despertar nos entrevistados emoções nunca dantes reveladas. Uma palavra sua basta para que lágrimas jorrem no rosto das jovens atrizes-personagens.

Mas Coutinho não acredita nos adolescentes. Conhece suas máscaras, desconfia de suas frases feitas e suas verdades per-feitas. Sabe que eles encerram em si uma armadilha inequívoca: a certeza do porvir, e todas as (des)venturas inerentes à passagem do tempo. Os adolescentes são espelhos biconvexos a refletir, dum lado, arcaicos dogmas ancestrais, doutro, surpreendentes mutações que reafirmam nossa crença no futuro da espécie. E esses nove jovens e uma criança encontram respostas tão profundas e poéticas para as perguntas filosóficas da maturidade (por que não dizer ‘da velhice’) de seu inquiridor que o deixam – e a nós também – mudos, extasiados, perplexos  .. “Deus é o homem que morreu”, diz a criança na bucha. E a frase ecoa na mente e na voz do cineasta. “O silêncio é tão estranho para o ser humano que pode provocar a insanidade”, profetiza em outro momento um dos garotos.

Em seu último documentário Coutinho está velho, rabugento, depreciativo, dispneico, enfisematoso. Faz perguntas sobre Deus, sobre Família, Amor e Morte. É impossível desvincular as cenas do filme do trágico episódio que marcou o final de sua vida. Uma questão torna-se imperativa: como admitir que um homem deste quilate, com “poderes” de provocar discursos tão emocionados em seus interlocutores, não tenha conseguido fazer seu próprio filho psicótico trocar a faca pela fala, o silêncio pelo tratamento? Como entender que ele tenha morrido dessa forma, covardemente apunhalado aos 80 anos, vítima de um dos crimes mais inquietantes da história universal: o parricídio? Sigo aqui pensando onde estariam de fato esses “poderes” que lhe atribuímos. E que “poderes” seriam esses, tão (in)visíveis em seus filmes. Talvez por agora seja melhor deixar as respostas em suspenso ..

O que posso então dizer é que ÚLTIMAS CONVERSAS não foge à regra. É mais um documentário de Eduardo Coutinho de profundo impacto estético, apesar de construído na mais absoluta simplicidade. Um único cenário: uma sala de aula quase vazia; uma parede, uma porta e uma cadeira. E adolescentes brasileiros escolhidos entre alunos da rede pública do ensino médio. Mas não se iludam, não é um documentário sobre ‘educação’, nem sobre ‘adolescentes’. É um filme de ‘mistério’. O mistério de existir.

Logo no início uma “novidade” em seus Docs, uma inversão de papéis: o cineasta, assumidamente personagem, abre o longa na pele e na cadeira do entrevistado. Desafiado por alguém da equipe ele confessa não estar satisfeito com o material filmado, diz não acreditar nos jovens, que a juventude não tem memória, que prefere as crianças. E ele segue até o final como personagem protagonista, quase sempre em off, poucas vezes à frente da câmera, mas o tempo inteiro em busca de um sentido para seu filme, como num making of dentro do filme, ou num filme onde não seja mais possível a distinção entre filme e making of, onde as palavras calam e o silêncio diz mais que todas as falas. O trigo e o joio já são uma coisa só. 

Essa sofisticação dramatúrgica nos lembra que não estamos diante de uma obra apenas de Eduardo Coutinho, há aqui o dedo-midas de João Moreira Salles, varrendo os dilemas do diretor pra dentro do filme. Ao morrer em fevereiro de 2014, Coutinho deixa 32 horas de material gravado – resultado de 9 dias de filmagem – e um caderno com anotações sobre o projeto, que então se chamava PALAVRAS e tinha incentivo do Governo do Estado do Rio.

Produtor de todos os filmes do cineasta, herdeiro inconteste do legado coutiniano e ele mesmo um dos maiores documentarista do país, Salles repensa, renomeia e finaliza o projeto. Junto com ele está a editora Jordana Berg, também "discípula" de Coutinho há duas décadas, responsável pela montagem de quase todos os seus trabalhos, e personagem deste Doc naquela primeira e decisiva cena. É ela quem, sentada à cadeira do diretor, repreende o cineasta incrédulo e insatisfeito, tentando devolver-lhe as “chaves” perdidas de um filme que está sendo renegado por ele como um pai que renega um filho. Ao final dessa cena – que parece de making of – ouve-se a última palavra de Coutinho: CORTA !! E aí voltamos às questões prementes: que “chaves” são aquelas? Que “poderes” são aqueles? Quantas portas ainda podem ser abertas?

Terão eles encontrado as respostas? Há respostas concretas para o mistério do cinema? E sobre os mistérios da vida e da morte, quem ousa responder?

[Silêncio]

Que mais posso adiantar sobre este Doc? Melhor não dizer mais nada. Apenas que ninguém deve deixar de vê-lo. Esqueçam a adolescência, a educação, a vida e a morte. Simplesmente assistam ao filme. Está tudo lá. ÚLTIMAS CONVERSAS fala por si, é um exemplar cinematográfico raro, um magnífico “trabalho em equipe”, obra-prima do gênero .. Um deleite para olhos, ouvidos, cérebros e corações.


Dario P Regis

CAMILLE CLAUDEL 1915 ( 2013 / França / drama biográfico / 95' ) de Bruno Dumont - por Dinara Guimarães.



Em seu filme, Camille Claudel 1915, Bruno Dumont trabalha com a justaposição de contrastes que resultam esclarecedores, ressaltando momentos pontuais. A começar pela escolha de Juliette Binoche sem maquilagem, deslumbrante no papel da Camille Claudel “louca”: sempre apreendida isolada em imagens fixas com enquadramento fechado no seu rosto sofrido, distante do universo de loucura das demais internas, cujos semblantes desfigurados prenunciam que a tentativa de sobrevida ali nada mais é que o apagamento do sujeito. No entanto, não é o que acontece com Camille Claudel, em cuja loucura se revela a própria afirmação do sujeito. 

Desde a abertura, Dumont desnuda a loucura de Camille como afirmação do sujeito. Ela é mostrada despida à beira de uma banheira sendo levada pelas freiras para tomar banho e lavar as mãos que mantém sempre sujas - o traço da escultora no seu trabalho com o barro que ainda conserva sua identidade dentro do Asilo de Montdevergues: um hospício só para mulheres, onde ficou confinada até a morte. 

Dumont resume no confronto entre a loucura de Camile, a escultora, e a espiritualidade religiosa de seu irmão, Paul Claudel (Jean-Luc Vicent), o grande poeta que foi igualmente um homem político, duas trajetórias “heterodoxas” de afirmação do sujeito: de um lado a “doença” psíquica, do outro a poesia. O filme mostra Paul tão delirante como Camille mas, mesmo contrastando os seus discursos, prevalece o da natureza antissocial do feminino ao invés da antirracionalidade do masculino: duas trajetórias de afirmação do sujeito moderno. 

Dinara Guimarães

WINTER SLEEP ( Kis Uykusu / 2014 / Turquia / 196’ ) de Nuri Bilge Ceylan – por Cristina Paraguassu.



A Turquia, que está no centro das atenções por, entre outros fatos, estar sendo pressionada a reconhecer oficialmente o Genocídio Armênio, ocupou novamente a mídia por causa deste filme magnífico de Nuri Bilge Ceylan que ganhou a Palma de Ouro no Festival de Cannes 2014.

Winter Sleep (Sono de Inverno) lembra uma peça de teatro; se o texto for encenado em um palco funcionará com perfeição. Tem referências literárias fortes, com personagens que lembram Dostoiévski e foi inspirado, disse o diretor, em um conto de Tchekov que ficou martelando em sua cabeça por 15 anos! Mas é também cinema de qualidade assombrosa, com uma iluminação incrivelmente bela e atuações memoráveis de um elenco excelente.

A trama é sobre um ator aposentado, Aydin (Haluk Bilginer), herdeiro de propriedades, que foi morar na Anatólia – Capadócia – em seu Hotel Othelo, uma linda construção incrustada na pedra, onde publica num semanário local e pretende escrever a História do Teatro Turco. Com ele vive sua jovem esposa Nihal (Melisa Sözen), a irmã dele Necla (Demet Akbag), um fiel empregado, uma empregada, alguns hóspedes. Há os habitantes de um vilarejo não muito perto...

Certo dia um guri deste vilarejo atira uma pedra contra o carro de Aydin e quebra o vidro. Por que fez isto? Como reagem todos e as consequências que terá este ato. Tudo isto vai sendo mostrado aos poucos. O quanto o ser humano pode ser sensível ao sofrimento alheio ou se perder em um egoísmo infinito. O quanto a desigualdade social e de gênero marca uma pessoa. E o quanto a paisagem de pedras e neve se assemelha aos sentimentos aprisionados, preconceitos e papeis socialmente preestabelecidos.

Há longos diálogos, roteiro do diretor e sua esposa Ebru Ceylan, pouca música, mas muitos sons da natureza que soam agradáveis em contraste a muito do que é dito. Um detalhe ridículo me incomodou: atrizes não deveriam por silicone no lábio superior, perde-se a expressão! Por melhor atuação que se tenha, fica parecendo boneca de ventríloquo, uma lástima!

A tradição de amar o cinema é forte na Turquia. Com um premiado diretor de filmes lindos como este, tomara que esteja garantida uma nova geração de ótimos cineastas. 

Cristina Paraguassu

Filmes que vi no 20º Festival É Tudo Verdade 2015 - por Cristina Paraguassu


PEKKA - dir. Alexander Oyen/Holanda/Cor/90'
Desenrola o novelo de um terrível caso que houve na Finlândia. Mostra como um mau diagnóstico - e tratamento pior - de psicopatologias podem ter consequências horríveis.

CARTUNISTAS, SOLDADOS DE INFANTARIA DA DEMOCRACIA - dir. Stephanie Valloatto/França /Cor/105'
Um retrato da situação de cartunistas em vários países, todos enfrentando algum risco, comprovando que o humor é uma arma poderosa em favor da democracia!

A HORA DO CHÁ - dir. Maite Albendi/Chile/ Cor/70'
Uma graça de filme, ousado ao mostrar os rostos enrugados de várias amigas que se reunem há 60 anos neste ritual imperdível! A avó da diretora faltou à exibição do primeiro curta metragem que ela havia feito para ir ao chá, fato que ocasionou esse filme.

MOANA SONORO - dir. Robert J. Flaherty, Frances H. Flaherty / Monica Flaherty /EUA/PB/1926-1980-2014 /105'
Um paraíso filmado com leveza, lindíssimo! Foi sonorizado em 1980 com canções de polifonia esplêndida e as falas em Samoano, sons da natureza enriqueceram o que já era especial!

CIDADÃOQUATRO - dir. Laura Poitras/ Alemanha/Cor/114 min
Um filme ruim a despeito da importância das denúncias feitas. O Oscar é mais uma injustiça na longa lista. Buñuel dizia que se a bunda doi enquanto se assiste a um filme, ele não é bom. Neste dói o corpo todo. Chatíssimo!

DE CALIGARI A HITLER - dir. Rüdiger  Suchsland /Alemanha/ PB/118'
Seguindo o livro de Sigfried Kracauer, mostra os filmes da república de Weimar. Comprovando o que Ezra Pound disse: "Os artistas são a antena da raça". Uma pena que os avisos não conseguiram evitar o pior. Filme indispensável para quem ama o cinema!

A NOITE CHEGARÁ - dir. André Singer/Reino Unido, EUA, Israel, Dinamarca/ Cor e PB/ 75'
Um documentário que Sidney Bernstein e Alfred Hitchcock estavam dirigindo e foi arquivado por motivos políticos, após mais de 70 anos foi concluído seguindo o roteiro original e está no Museu da Guerra na Inglaterra. Essa história é contada com depoimentos e cenas do filme da libertação dos campos de concentração, além de imagens também chocantes dos habitantes das proximidades que levavam uma vida normal e alegre, mesmo sabendo o que ocorria! 

ORESTES - dir.Rodrigo Siqueira/ Brasil/Cor/2014 /93'
Em três ambientes(Real, Psicodrama e Ficção) há o destrinchamento da violência policial no Brasil. Há citação da tragédia grega no começo - em uma trágica coincidência o pai do diretor faleceu durante as filmagens - e um julgamento de um personagem fictício com promotor e advogado de defesa de verdade dão amplidão ao problema, tão urgente de ser resolvido.

A FRANÇA É NOSSA PÁTRIA - dir. Rithy Panh /França/PB/75'
Usando frases de um médico francês da Indochina, contraditas com as imagens fabulosas da época, tudo acompanhado por músicas que atuam nas cenas, é o mas brilhante filme contra as ideias colonizadoras que já vi. Mereceu ganhar o Festival e merece ser visto por todos, sobretudo em países como o Brasil em que tantos indígenas sofrem com ideias de "progresso e civilização" em detrimento de suas milenares civilizações tão evoluídas em vários aspectos.

ORESTES ( 2015 / Documentário / Brasil / 93’) de Rodrigo Siqueira – por Rudá Lemos



Em competição no Festival ‘É Tudo Verdade’ 2015, Orestes parte da referência direta ao mito grego que é considerado o marco da justiça contra a vingança. A transposição para o Brasil atual une as cicatrizes dos crimes da ditadura com a violência cotidiana cometida pela ‘democracia’. O Estado como um inimigo comum, em que o cidadão sofre com os abusos cometidos pelos fascismos de ontem e hoje.

Rodrigo Siqueira, seu diretor, esquematiza seu filme como uma tragédia em três atos. Inicia-se por um breve relato do drama particular de uma filha inocente que sofreu pela traição de infiltrados na época ditatorial. Essa vítima se reúne com outros sobreviventes da dor da violência em um psicodrama que busca expurgar o sofrimento mais interior. Como catarse, fechando o ciclo, há um julgamento encenado de um novo Orestes, filho parricida que vinga o assassinato da mãe pelo pai.

Mas sabendo que a violência é marca registrada da humanidade, sabemos que esse ciclo não é fechado. Saímos do filme incomodados por tantas fraturas expostas de uma sociedade completamente adoecida. Siqueira joga ficção na realidade, quando percebe que a realidade já está carregada demais. E joga realidade na ficção, para afastar a ilusão que o sofrimento não pode estar por perto.

Ao colocar uma militante raivosa das mães de classe média que perderam seus filhos pela violência urbana num psicodrama que reúne de maneira mais homogênea as vítimas do Estado (ditador antes, policialesco hoje), Siqueira joga a faísca em conflitos que sempre se mostraram irreconciliáveis na história do Brasil. O apoio às forças repressoras da sociedade e a busca de uma justiça possível; o tratamento policial e jurídico desigual dado à certa elite econômica e social e ao dispensado ao povo negro e pobre; a transição da ditadura para a democracia.

Sabendo que o consenso sobre esses temas é impossível, o filme se abstém de fazer o próprio julgamento dos relatos reais. A militante vocifera a favor da pena de morte e do linchamento para logo depois um aviso na porta indicar que ela é uma avó carinhosa. Sua voz, que é constantemente reproduzida pelo pensamento comum nos bares e padarias que passamos, não percebe que a criminalidade é estrutural e decorrente da desigualdade. Mesmo sendo encenado, o julgamento final não mostra um resultado. Deixa entender. A segurança pública necessita de uma nova justiça que ainda não chegou e que o filme não tem condições de sugerir. Afinal, é de tragédia que estamos tratando.

Rudá Lemos

O DANÇARINO DO DESERTO ( Desert Dancer / 2014 / Drama Biográfico / Reino Unido / 98' ) de Richard Raymond – por Cristina Paraguassu.



"Dancem, dancem! Se não estaremos perdidos!" A frase testamento de Pina Bausch além de um pedido é um aviso: o mundo intolerante em que vivemos tem facetas nunca antes vistas. Baseado em fatos reais da vida de  Afshin Ghaffarian (Reece Ritchie), com roteiro de Jon Croker, a ótima estreia de Richard Raymond na direção de um longa, conta uma linda história de amor à arte e persistência.

Entretanto, além de ser em inglês (isto é banal no cinema), faltam músicas, instrumentos musicais e danças persas, há um enaltecimento da cultura ocidental com citações de Dirty Dancing a Michael Jackson um pouco desnecessárias, outras essenciais como a dança de Nureyev  que fisgam o menino Afshin e o espectador, e a citação ao youtube causa risos. Globalização cultural, mas de mão única.

Depois da Revolução de 1979 foram proibidas várias atividades no Irã e criada uma milícia paramilitar , Basij, para "cuidar da ordem".

Os ultraconservadores dirão que a cultura de cada povo deve ser respeitada. E concordando com eles, é bom lembrar que há mais de 2 mil anos havia na Pérsia(Irã) o deus da Luz, Mitra, a quem eram sacrificados touros e os homens dançavam em sua homenagem. Por coincidência o mestre Mehdi (Makram J. Khoury) que tem um centro de artes, além de mostrar o vídeo de Nureyev, também lê um poema de Rumi que fala em Luz!

As coreografias belíssimas de Akram Khan mereceriam melhores enquadramentos. As mãos maravilhosas que saem de cena...

A amiga, amada e de certa forma "professora" de Afshin, Elaheh (Freida Pinto), além de dizer a frase chave do que é a dança, também é viciada em heroína - fartamente consumida no underground - que diz ser para “alienar a juventude", prática comum nos regimes totalitários. E as cenas de abstinência são coreografias da dor e sofrimento muito bem mostradas.

As manifestações políticas em favor de Mousavi, adversário de Ahmadinejad, a onda Verde em 2007, é um alento de se ver, sobretudo no Brasil atual, perigosamente sem confiança nos políticos.

A cena da tão sonhada apresentação no deserto é entremeada com uma tensão clichê, mas nada de tão absurdo. Depois a peça de teatro “A Tempestade”, do bardo Shakespeare, é uma cereja no bolo, uma coda em que o real Afshin Ghaffarian surgirá, em seu exílio em 2009.

O deserto é ótima metáfora de regimes totalitários, e a arte é fartamente comprovada como instrumento libertador. Dizem alguns que a dança teria sido a primeira das artes da humanidade. E ainda existirá por muito tempo se depender de jovens como esse dançarino do deserto.


Cristina Paraguassu

DÍVIDA DE HONRA ( The Homesman / 2014 / Western / 122’) de Tommy Lee Jones – por José Roberto de Oliveira.



Esse negócio de releitura, repaginação, recompreensão, considero sempre bom. Quando se trata de western, melhor ainda. Veja-se por exemplo este “Dívida de Honra” (The Homesman), um filme lindo sobre rompimento de paradigmas e busca de identidade. Um western contemporâneo bem sacado –, mais um sobre a odisseia norte-americana que foi o Velho Oeste, poderia se chamar não “Parahyba Mulher Macho”, uma ode à identidade feminina, mas alguma coisa parecida com “Maria, mulé, bonita, inteligente, carinhosa, batalhadora e insegura”.  

O que atrapalha todo mundo naquele povoado é a organização psicológica precária geral. Estão construindo um novo mundo, uma nova maneira de viver, mas é muito difícil inovar, romper com os velhos paradigmas. Os seres humanos deste filme vivem situações limite, homens e mulheres testando realidades psicológicas desconhecidas, inovadoras, faroestianas. Sim, porque o desbravamento do oeste é alegoria disso, das inovações nos modus vivendi, dos aprimoramentos das personalidades. 

Ela, a personagem feminina principal, Mary Bee Cuddy (Hilary Swank), é uma moça bonita, trabalhadeira, absolutamente prendada, com interesses vários, projetos, sensibilidade pessoal e social, já “velha” aos 31 anos. Como um Narciso que achasse feio o que vê no espelho, está insegura apesar de saber fazer de tudo: ara a própria terra, cuida primorosamente do rancho, mantém sua casa limpíssima, cozinha como uma chef, toca piano, um piano imaginário com teclas bordadas num tecido – um pano comprido que se enrola quando fechado e que quando se desenrola mostra um teclado bordado – que utiliza para não perder a mão de tocar num piano verdadeiro que não pode comprar ainda. Ela não vive sem música, canta, lembra-se de canções antigas.

Pensa também em arranjar um marido, olha aí o antigo paradigma se impondo. Não existe homem interessante no lugar. Ela se conforma com a falta do bom, do belo, e do desejável, que seria o mais apropriado para seu universo psicológico sofisticado, e vai atrás do único macho disponível: um dia convida um vizinho, faz-lhe um lauto jantar, canta para ele depois do jantar, nem se incomoda com o fato de ele adormecer no final do recital, macho é precário mesmo, até os mais sofisticados. Procura, em seguida, uma retribuição imediata ao excelente repasto. Através de argumentos racionais tenta convencê-lo que seria de grande utilidade – para os dois – que se casassem. Juntariam suas forças, suas terras, ela cuidaria dele e ele dela, se viessem filhos seria uma benção. 

Aqui aparece o que revolta o eventual espectador descolado do filme: o cara que ela escolheu para tentar se casar é um burro. O sujeito se assusta, se irrita, diz que nunca se casaria com ela porque não tem atrativo nenhum e porque é mandona. Sai atabalhoadamente da casa, comunicando que vai buscar sua esposa em outro lugar. Vai para o antigo Leste. O espectador fica doente. Claro que a besta não enxerga o melhor, a potencial realidade paradisíaca, estando do lado de dentro da sua barba mal feita de macho troglodita. Que distância, pode-se constatar, do ajoelhar-se para pedir em casamento a garota dos sonhos das épocas futuras... O marmanjo nem percebe que aquela é a garota dos seus sonhos. 

Ela, no entanto, apesar da rejeição do vizinho, continuou sua vida. O grande problema da comunidade naquele momento é que havia três mulheres da redondeza que haviam enlouquecido. Naquele mundo de Cro-Magnons, acharam que o melhor para elas, para as mulheres loucas, era devolvê-las à sua origem, ao leste maravilha. Por questões íntimas que têm a ver com religiosidade e ética, ao saber do problema no culto religioso que frequentava, Mary acabou propondo aos outros habitantes levar pessoalmente as três infelizes para serem cuidadas em lugar apropriado, arranjado e articulado pelo pastor. Este a princípio não queria deixá-la ir, mas acabou aceitando a contragosto porque naquele contexto não existia outra possibilidade. 

(As psicoses apresentadas pelas mulheres, nesse contexto, vêm contrapondo as psicoses masculinas. E por que “psicose”, no caso dos homens? Exatamente porque o tipo de resposta à novidade dos desafios, o intenso narcisismo, a falta de conseguir enxergar com exatidão um mínimo da realidade externa em que vivem, autoriza a que se pense que estão imersos num processo psicótico dinâmico, eles também, os homens. Não são só as mulheres que estão loucas.)

Veja-se que a protagonista não se nega a ajudar o próximo, tem uma sensibilidade sofisticada até para isso, ajudar o próximo, além de todas as outras habilidades, virtudes e dons que possui. O pastor acaba conseguindo uma espécie de carruagem onde ela coloca as três loucas e começa sua viagem. Após certo tempo encontra na estrada um condenado (Lee Jones) que foi deixado para ser enforcado embaixo de uma árvore, amarrado com o pescoço numa corda, na sela de um cavalo. Se o cavalo se mexer ele cai e é enforcado. Quando ela o encontra ele está naquela tensão periclitante, a um passo do enforcamento. Ela, vendo o que se passa, vislumbra a possibilidade de que ele possa ajudá-la no seu projeto, negocia com ele sua libertação fazendo com que ele prometa ajudá-la. Ele efetivamente o faz. Daqui vem o título do filme em português, “Dívida de Honra”. Ele se compromete a levar as moças para a titia Meryl Streep, que está atuando como uma elegante e bondosa senhora, esposa do pastor do leste maravilha. 

A viagem até a chegada à Meryl é o mote do filme, que a partir desse primeiro momento torna-se uma espécie de roadmovie numa carroça. Muitas peripécias, o encontro com índios hostis e outros acontecimentos muito bem filmados, muito bem resolvidos. Excelente roteiro. 

A forma como a moça lida com a baixa autoestima, que insiste em assolá-la no mais importante episódio dessa viagem, é o que mais impacta e provoca reflexão no espectador. O filme possibilita meditações diversas sobre difíceis questões existenciais. 

Olhe, assista. Obra cinematográfica importante. Volte aqui depois e comente o que assistiu. Nossa! É o que você vai dizer, tenho quase certeza!

José Roberto de Oliveira