DÍVIDA DE HONRA ( The Homesman / 2014 / Western / 122’) de Tommy Lee Jones – por José Roberto de Oliveira.



Esse negócio de releitura, repaginação, recompreensão, considero sempre bom. Quando se trata de western, melhor ainda. Veja-se por exemplo este “Dívida de Honra” (The Homesman), um filme lindo sobre rompimento de paradigmas e busca de identidade. Um western contemporâneo bem sacado –, mais um sobre a odisseia norte-americana que foi o Velho Oeste, poderia se chamar não “Parahyba Mulher Macho”, uma ode à identidade feminina, mas alguma coisa parecida com “Maria, mulé, bonita, inteligente, carinhosa, batalhadora e insegura”.  

O que atrapalha todo mundo naquele povoado é a organização psicológica precária geral. Estão construindo um novo mundo, uma nova maneira de viver, mas é muito difícil inovar, romper com os velhos paradigmas. Os seres humanos deste filme vivem situações limite, homens e mulheres testando realidades psicológicas desconhecidas, inovadoras, faroestianas. Sim, porque o desbravamento do oeste é alegoria disso, das inovações nos modus vivendi, dos aprimoramentos das personalidades. 

Ela, a personagem feminina principal, Mary Bee Cuddy (Hilary Swank), é uma moça bonita, trabalhadeira, absolutamente prendada, com interesses vários, projetos, sensibilidade pessoal e social, já “velha” aos 31 anos. Como um Narciso que achasse feio o que vê no espelho, está insegura apesar de saber fazer de tudo: ara a própria terra, cuida primorosamente do rancho, mantém sua casa limpíssima, cozinha como uma chef, toca piano, um piano imaginário com teclas bordadas num tecido – um pano comprido que se enrola quando fechado e que quando se desenrola mostra um teclado bordado – que utiliza para não perder a mão de tocar num piano verdadeiro que não pode comprar ainda. Ela não vive sem música, canta, lembra-se de canções antigas.

Pensa também em arranjar um marido, olha aí o antigo paradigma se impondo. Não existe homem interessante no lugar. Ela se conforma com a falta do bom, do belo, e do desejável, que seria o mais apropriado para seu universo psicológico sofisticado, e vai atrás do único macho disponível: um dia convida um vizinho, faz-lhe um lauto jantar, canta para ele depois do jantar, nem se incomoda com o fato de ele adormecer no final do recital, macho é precário mesmo, até os mais sofisticados. Procura, em seguida, uma retribuição imediata ao excelente repasto. Através de argumentos racionais tenta convencê-lo que seria de grande utilidade – para os dois – que se casassem. Juntariam suas forças, suas terras, ela cuidaria dele e ele dela, se viessem filhos seria uma benção. 

Aqui aparece o que revolta o eventual espectador descolado do filme: o cara que ela escolheu para tentar se casar é um burro. O sujeito se assusta, se irrita, diz que nunca se casaria com ela porque não tem atrativo nenhum e porque é mandona. Sai atabalhoadamente da casa, comunicando que vai buscar sua esposa em outro lugar. Vai para o antigo Leste. O espectador fica doente. Claro que a besta não enxerga o melhor, a potencial realidade paradisíaca, estando do lado de dentro da sua barba mal feita de macho troglodita. Que distância, pode-se constatar, do ajoelhar-se para pedir em casamento a garota dos sonhos das épocas futuras... O marmanjo nem percebe que aquela é a garota dos seus sonhos. 

Ela, no entanto, apesar da rejeição do vizinho, continuou sua vida. O grande problema da comunidade naquele momento é que havia três mulheres da redondeza que haviam enlouquecido. Naquele mundo de Cro-Magnons, acharam que o melhor para elas, para as mulheres loucas, era devolvê-las à sua origem, ao leste maravilha. Por questões íntimas que têm a ver com religiosidade e ética, ao saber do problema no culto religioso que frequentava, Mary acabou propondo aos outros habitantes levar pessoalmente as três infelizes para serem cuidadas em lugar apropriado, arranjado e articulado pelo pastor. Este a princípio não queria deixá-la ir, mas acabou aceitando a contragosto porque naquele contexto não existia outra possibilidade. 

(As psicoses apresentadas pelas mulheres, nesse contexto, vêm contrapondo as psicoses masculinas. E por que “psicose”, no caso dos homens? Exatamente porque o tipo de resposta à novidade dos desafios, o intenso narcisismo, a falta de conseguir enxergar com exatidão um mínimo da realidade externa em que vivem, autoriza a que se pense que estão imersos num processo psicótico dinâmico, eles também, os homens. Não são só as mulheres que estão loucas.)

Veja-se que a protagonista não se nega a ajudar o próximo, tem uma sensibilidade sofisticada até para isso, ajudar o próximo, além de todas as outras habilidades, virtudes e dons que possui. O pastor acaba conseguindo uma espécie de carruagem onde ela coloca as três loucas e começa sua viagem. Após certo tempo encontra na estrada um condenado (Lee Jones) que foi deixado para ser enforcado embaixo de uma árvore, amarrado com o pescoço numa corda, na sela de um cavalo. Se o cavalo se mexer ele cai e é enforcado. Quando ela o encontra ele está naquela tensão periclitante, a um passo do enforcamento. Ela, vendo o que se passa, vislumbra a possibilidade de que ele possa ajudá-la no seu projeto, negocia com ele sua libertação fazendo com que ele prometa ajudá-la. Ele efetivamente o faz. Daqui vem o título do filme em português, “Dívida de Honra”. Ele se compromete a levar as moças para a titia Meryl Streep, que está atuando como uma elegante e bondosa senhora, esposa do pastor do leste maravilha. 

A viagem até a chegada à Meryl é o mote do filme, que a partir desse primeiro momento torna-se uma espécie de roadmovie numa carroça. Muitas peripécias, o encontro com índios hostis e outros acontecimentos muito bem filmados, muito bem resolvidos. Excelente roteiro. 

A forma como a moça lida com a baixa autoestima, que insiste em assolá-la no mais importante episódio dessa viagem, é o que mais impacta e provoca reflexão no espectador. O filme possibilita meditações diversas sobre difíceis questões existenciais. 

Olhe, assista. Obra cinematográfica importante. Volte aqui depois e comente o que assistiu. Nossa! É o que você vai dizer, tenho quase certeza!

José Roberto de Oliveira