THE FITS ( 2015 / EUA / drama / 71' ) de Anna Rose Holmer - por Dario PR



Anna Rose Holmer (foto) faz seu debute em longa de ficção num filmaço que ela escreveu, produziu e dirigiu, com baixíssimo orçamento e a certeza de quem sabe o que está fazendo e aonde quer chegar. Ao final da sessão, o espectador tem a consciência de que acabou de ver uma obra de realizadores que ainda vão fazer muitos filmes inesquecíveis e dar o que falar na cena ‘cine’ americana.  

A ambivalência que paira por todo o longa começa no título. Em inglês The Fits pode significar ajustes, encaixes, enquadramentos, adaptações. Mas também pode ser convulsões, tremores, trancos, ataques epileptoides. Os dois sentidos cabem perfeitamente nessa película. 

Nossa protagonista onipresente chama-se Toni, um nome também ambíguo para uma menina americana negra e pré-adolescente. Ela é o que os americanos chamam de uma ‘tomboy’, uma garota que gosta de esportes violentos, frequenta um universo dominado por garotos, convive e se comporta como um deles. 

Apesar de focar na busca de identidade da personagem, o filme opta por nada mostrar de sua vida familiar. Grande acerto! Toda a ação se passa no centro esportivo da escola (para negros?), em que está a academia de boxe onde ela treina diariamente, mas em que há também uma academia de dança, onde ensaia um 'dance drill team', um fechado grupo de meninas negras chamado The Lionesses / As Leoas. Alguma coisa ali desvia o foco de Toni, que se distancia do boxe, passa a se interessar pela dança das gurias e aos poucos vai sendo absorvida não apenas pelo grupo das garotas, mas pelo mundo delas.  É sobre isso que fala o filme: a descoberta do universo feminino realizada por uma menina que ainda não vive nele. Nas garotas do grupo de dança Toni vislumbra um mundo que, como o seu, também é guiado pela força, mas associada a uma certa 'qualidade misteriosa do feminino', que ela ainda não tem, e deseja. 

O centro esportivo da escola e o grupo de dança usados no filme são reais; de fato existem em Cincinnati, Ohio, uma cidade situada exatamente no limite entre o norte e o sul dos Estados Unidos, onde a segregação, seja étnica ou econômica, sempre esteve muito presente. Também não há atores profissionais no projeto. As dançarinas (mesmo a protagonista) são interpretadas por elas próprias. Tudo isso a princípio dá ao longa um toque de realismo quase documental. Mas aí entra a engenhosa ficção trazendo novas ambivalências à história .. As meninas mais experientes do grupo começam, uma após outra, a apresentar estranhas crises de desmaio, contorção e convulsão durante os ensaios. Ninguém consegue explicar o motivo dos ataques e se suspeita que provenha de uma contaminação da água. 

Com um nome no mínimo inspirador - Royalty Hightower / Torre da Realeza (foto abaixo) - a menina que vive a Toni está perfeita no papel. Um desses achados de casting que fazem a gente acreditar no 'santo padroeiro do cinema independente'. Ou talvez tenha sido o resultado de uma longa e adequada preparação que a permitiu construir lentamente sua própria Toni (não creio!). O filme inteiro é desenhado na subjetividade ambígua da protagonista, e a jovem atriz, com poucas falas e muitos movimentos, consegue alcançar o nível exato da complexidade exigida pela personagem. Talento é assim, já nasce feito. 

A histeria foi durante muito tempo (e não por acaso) considerada uma doença das mulheres. Nesse filme, os ataques das dançarinas são sintomas de um processo patológico já bem estudado, a "histeria em massa" ou "histeria coletiva". As crises vão se sucedendo entre as meninas, e o que a princípio era ameaçador e doentio, passa a ter a função de um ritual de passagem que elas inconscientemente usam para se sentirem ajustadas e bem aceitas no grupo. 

Toni é uma das poucas que ainda não tiveram o "ataque". Ela quer desesperadamente fazer parte desse grupo, mas não consegue sentir da mesma forma que as outras meninas. Como lidar com isso? .. Não conto mais !! Vejam o filme. Prometo que não vão se arrepender. O novo cinema está aí. É de baixo orçamento, criativo, desafiador, e muito bom. 

Dario PR


ps> filme visto na Sala Web no 72º Venice International Film Festival


ITALIAN GANGSTERS (Doc/2015/Italia/87'), de Renato De Maria - por Dario PR

O documentário é um gênero privilegiado ao desafiar o ideal criativo dos cineastas. Como escapar da obviedade do trio: narração em off, depoimentos e imagens de arquivo? O diretor Renato de Maria consegue sair-se bem ao contar as façanhas de 6 mafiosos, traçando através deles um panorama intimista da famigerada máfia napolitana, e ademais abrangente, ao expor as transformações sociais que aconteceram na história da Itália ao longo do século XX.

Seis atores representam os protagonistas através de breves monólogos em primeira pessoa, sempre olhando para a câmera, numa sala escura onde além do ator o único elemento cênico é a luz, sutilmente desenhada em superposição de sombras para realçar detalhes mínimos das expressões faciais. As falas são sempre curtas, pois de pronto os textos são complementados por imagens de arquivo. Uma mais interessante que a outra, a maioria extraída de filmes de ficção italianos dos anos 60/70 (grande sacada), algumas de reportagens de época da RAI (TV estatal) ou de arquivos familiares em Super 8. Tudo mesclado numa montagem/edição ágil e delicada que constrói um painel íntimo, atraindo a atenção do espectador com eficácia invisível. 
  
As histórias vão se desenrolando desde quando eles eram jovens e sequer pensavam em se tornarem gangsters. Tenta-se dessa forma escrutinar as razões e condições que os levaram à criminalidade. Várias hipóteses são levantadas. Nenhuma 'verdade' é vaticinada. Os depoimentos são concebidos como uma confissão ou um interrogatório, não deixando que a narrativa se desatrele do percurso dos personagem. Os crimes (não usam esse nome) são contados por eles como atos de bravura, e descritos como expressões de um fenômeno social maior, a guerra, e suas variantes: a luta pela sobrevivência, a guerrilha urbana, a violência revolucionária .. Matar ou morrer são faces da mesma moeda histórica .. "Brecht dizia que fundar um banco é um crime maior que roubá-lo. Eu concordo" .. O crime organizado é revelado sem intensão de fazer julgamentos de valor, simplesmente mostrado de um dos pontos de vista possível: o de seus heróis; aqui, bandidos.

Temas recorrentes vão aparecendo: a luxúria e ostentação dos primeiros tempos, a guerra contra os aparatos repressores do Estado, o confinamento em esconderijos secretos, inúmeras batalhas com a polícia, muitos tiros, perseguições, prisões, torturas, d e l a ç õ e s .. As verdades subjetivas são mais importantes pra narrativa que a realidade histórica dos fatos. E aí o uso das imagens ficcionais veste como uma luva.

Além da descrição das façanhas também entra em foco a vida pessoal, o culto à família, às amizades e até seus relacionamentos sexuais e amorosos. Uma coisa muito palpável eles tem em comum: suas armas, e a veneração por revólveres e metralhadoras, quase objetos de fetiche. Numa frase sugestiva, contando dos tempos de rapaz, um deles diz: "Quando eu saía pra passear de Cadillac com as garotas, depois de deixá-las sentir o canário, eu as deixava sentir a pistola”.

Um filme de aura masculina (feito por homens, sobre outros homens) mas que ao unir inteligência estética a uma temática de interesse universal, torna-se de grande apelo não apenas para o espectador masculino italiano, mas para qualquer cidadão do mundo, mais ou menos mafioso, mais ou menos homem ..

Dario PR


ps> visto na sala web durante o festival de veneza 2015


FILMES BRASILEIROS NO FESTIVAL DO RIO 2015


O 17º Festival do Rio 2015 divulga a lista dos filmes brasileiros em exibição. Serão 19  curtas e 41 longas [23 em World Première] divididos entre as Mostras Competitivas (Première Brasil e Novos Rumos) e Não-Competitivas (Hors Concours, Rio 450 Anos, Panorama, Expectativa, Fronteiras, Midnight, Tesouro e Itinerários Únicos). Confira abaixo a lista completa divulgada hoje.

O evento, que costuma acontecer na última semana de setembro e primeira de outubro, esse ano teve seu calendário modificado para as duas primeiras semanas de outubro. O Festival não se pronunciou oficialmente mas correu entre os jornalista o "informe" que o adiamento teria sido pra não coincidir com o Rock in Rio na última semana de setembro. Mudança, aliás, apoiada por todos.  

Uma notícia bastante festejada é a volta do Cine Odeon como uma das salas de exibição da Première Brasil. Mas a maior novidade esse ano fica por conta da mostra comemorativa 'Rio 450 anos' composta por 3 filmes nacionais e 3 estrangeiros que têm a cidade como cenário ou tema. 

É isso pessoal. A partir de hoje os cinéfilos do Rio já contam os dias e se mobilizam cotidianamente no acompanhamento dos filmes selecionados, da grade de programação, da venda dos ingressos, dos convidados que virão .. É a festa da cinefilia carioca. É cinema na veia! E há anos que a gente não perde por nada .. 

DarioPR
1º/Set/2015

LONGAS EM MOSTRAS COMPETITIVAS

Ficção

1.  Aspirantes (Hopefuls), de Ives Rosenfeld, 75 min (RJ)
2.  A Floresta Que se Move (The Moving Forest), de Vinícius Coimbra, 99 min (RJ)
3.  Beatriz (Beatriz), de Alberto Graça, 99 min (RJ) WP
4.  Boi Neon (Bull Down), de Gabriel Mascaro, 101 min (PE)
5.  Califórnia (California), de Marina Person, 85 min (SP) WP
6.  Campo Grande (Campo Grande), de Sandra Kogut, 109 min (RJ)
7.  Introdução à Música do Sangue (Introduction to the Music of Blood), de Luiz Carlos Lacerda, 95 min, (RJ)
8.  Mate-me Por Favor (Kill Me Please), de Anita Rocha da Silveira, 101 min (RJ)
9.  Mundo Cão (In Dog's Words), de Marcos Jorge, 100 min (SP) WP
10. Nise - Coração da Loucura (Nise - The Heart of Madness), de Roberto Berliner, 109 min (RJ) WP
11. Órfãos do Eldorado (Orphans of Eldorado), de Guilherme Coelho, 96 min (RJ)
12. Quase Memória (Oblivious Memory), de Ruy Guerra, 95 min (RJ) WP
13. Tudo que Aprendemos Juntos (The Violin Teacher), de Sérgio Machado, 100 min (SP) 

Documentário

1.  Betinho - A Esperança Equilibrista (Betinho - Hope on the Line), de Victor Lopes, 90 min (RJ) WP
2.  Cordilheiras no Mar: A Fúria do Fogo Bárbaro (Ridges in the Sea: The Fury of the Wild Fire), de Geneton Moraes Neto, 98 min (RJ)
3.  Crônica da Demolição (Chronicle of the Demolition), de Eduardo Ades, 89 min (RJ) WP
4.  Futuro Junho (Future June), de Maria Augusta Ramos, 100 min (RJ) WP
5.  Marias (Marias), de Joana Mariani, 73 min (SP) WP
6.  Mario Wallace Simonsen, Entre a Memória e a História (Mario Wallace Simonsen, Between Memory and History), de Ricardo Pinto e Silva, 110 min (SP) WP
7.  Olmo e a Gaivota (Olmo and The Seagull), de Petra Costa e Lea Glob, 82 min (SP) 

Novos Rumos

1.  A Morte de J.P. Cuenca (The Death of J.P.Cuenca), de João Paulo Cuenca, 90 min (RJ) WP
2.  A Seita (The Sect), de André Antônio, 70 min (PE) WP
3.  Beira-Mar (Seashore), de Filipe Matzembacher & Marcio Reolon, 83 min (RS)
4.  Clarisse ou alguma coisa sobre nós dois (Clarisse or something about us), de Petrus Cariry, 84 min (CE) WP
5.  Jonas (Jonah), de Lô Politi, 90 min (SP) WP
6.  Ralé (Ralé - The Lower Depths), de Helena Ignez, 73 min (SP) WP

LONGAS EM MOSTRAS NÃO COMPETITIVAS

Hors Concours - Ficção

1.  Através da Sombra (The other side of the Win), de Walter Lima Jr., 100 min (RJ) WP
2.  Em Três Atos (In Three Acts), de Lúcia Murat, 76 min (RJ)

Hors Concours - Documentário

1.  82 Minutos (82 Minutes), de Nelson Hoineff, 125 min (RJ) WP
2.  Andre Midani - do Vinil ao Download (A Brief History of Brazilian Music - Andre Midani, from Vinyl to Download), de Andrucha Waddington e Mini Kerti, 120 min (RJ) 

Rio 450 Anos

1.  O Rio por Eles (Rio by Them), de Ernesto Rodrigues, 90 min (RJ) WP
2.  São Sebastião do Rio de Janeiro, a Formação de uma Cidade (São Sebastiao do Rio de Janeiro, Creating a City), de Juliana de Carvalho, 90 min (RJ) WP
3.  O Porto do Rio, de Pedro Évora, Luciana Bezerra, 85 min (SP) WP

Panorama

1.  No Retrovisor [título provisório] (Looking at the Rear View Mirror), de João Araujo, 101 min (RJ) WP
2.  Brasil vs Brasil (Brasil vs Brasil), de Marcos Prado, 52 min (RJ) WP

Expectativa

1.  Ninguém Ama Ninguém... Por Mais de Dois Anos (No One Loves Anyone... For More Than Two Years), de Clovis Mello, 87 min (SP) WP
2.  Zoom (Zoom), de Pedro Morelli, 97 min (SP)
3.  Quanto Tempo o Tempo Tem (How Much Time Time Has), de Adriana L. Dutra, 80 min (RJ) 

Fronteiras

1.  Levante! (Uprising!), de Susanna Lira e Barney Lankester-owen, 52 min (RJ) 

Midnight

1.  As Fábulas Negras (The Black Fables), de Rodrigo Aragão, Joel Caetano, Petter Baiestorf e José Mojica Marins, 93 min (ES)

Tesouro

1.  Menino de Engenho, de Walter Lima Jr, 110 min - 1965 - cópia restaurada. 

CURTAS EM MOSTRAS COMPETITIVAS

Première Brasil

1.  Até a China (Sheeliton), de Marão, 15 min (RJ) DOC
2.  Cumieira (The Top Floor), de Diego Benevides, 13 min (PB) DOC
3.  Fantasia de Papel (Photonovels), de Tetê Mattos, 15 min (RJ) DOC
4.  Guida (Guida), de Rosana Urbes, 12 min (SP) FIC
5.  Mar de Fogo (Sea of Fire), de Joel Pizzini, 8 min (RJ) DOC
6.  Marrocos (Morocco), de Andrea Nero e Iajima Silena, 8 min (SP) DOC
7.  Olho-Urubu (Urubu-Eye), de André Guerreiro Lopes, 13 min (SP) FIC
8.  Pele de Pássaro (Bird Skin), de Clara Peltier, 15 min (RJ) DOC
9.  Serra do Caxambu (Serra do Caxambu), de Marcio Brito Neto, 15 min (RJ) DOC
10. Som Guia (Sound Guide), de Felipe Rocha, 15 min (RJ) FIC

Novos Rumos

1.  Escape From My Eyes (Escape From My Eyes), de Felipe Bragança, 30 min (RJ) DOC
2.  Imóvel (Still), de Isaac Pipano, 20 min (RJ) FIC
3.  Outubro Acabou (October is Over), de Karen Akerman, Miguel Seabra Lopes, 24 min (RJ) FIC
4.  Tarântula (Tarantula), de Aly Muritiba, Marja Calafange, 20 min (PR) FIC

CURTAS EM MOSTRAS NÃO COMPETITIVAS

Rio 450 Anos

1.  A Pedra Que Samba (A Rock That Sambas), de Camila Agustini e Roman Lechapelier, 12 min (RJ) DOC
2.  Projeto Beirute (Beirut), de Anna Azevedo, 15 min (RJ) DOC
3.  Solte os Bichos de Uma Vez! (Heads Will Roll!), de Marcelo Goulart, 11 min (RJ) DOC

Itinerários Únicos

1.  Lygia Clark em Nova York (Lygia Clark in New York), de Daniela Thomas, 26 min (RJ) DOC
2.  Xampy (Xampy), de Paulo Menezes e Daniel Wiermant, 25 min (SP) DOC

GRAMADO 2015 / FINALEIRA - por Dario PR


No Festival de Gramado tudo acontece em ritmo de urgência e com tal intensidade que quando termina deixa sempre uma grande saudade no coração de quem mergulhou de fato na experiência. Sem falar do cansaço que bate, pelo turbilhão de emoções vividas, pelas noites sem dormir, por tantos filmes vistos, novos amigos, velhos amigos, esperanças, projetos, disputas, políticas e paixões .. Tudo junto e misturado .. Passada a ressaca, é hora de refletir um pouco sobre o saldo do Festival.

A noite de maior celebração do 43º Festival de Cinema de Gramado, neste último sábado (15/08/2015), distribuiu Kikitos em 28 categorias e R$ 280 mil em prêmios aos vencedores, além do troféu ‘Cidade de Gramado’ a 6 filmes (dois longas estrangeiros, dois longas e dois curtas brasileiros) escolhidos pelo júri popular e pelo júri da crítica.


A cerimônia de premiação foi marcada pela “Ausência” do cineasta Chico Teixeira, o grande vitorioso da noite, que não pôde vir ao festival por estar em quimioterapia. Seu longa recebeu 4 Kikitos de melhor filme, diretor, roteiro e trilha musical (para Alexandre Kassin). Todos merecidos, pois o filme é excepcional (vejam minha crítica aqui). Representando o diretor estiveram em Gramado os atores Gilda Nomacce e Matheus Fagundes, mãe e filho no filme que, não tendo sido eles mesmos premiados, subiram ao palco quatro vezes. Chico enviou pra Gramado um vídeo que foi exibido no telão do Palácio dos Festivais.

Gilda Nomacce .. Nunca houve uma mulher como Gilda .. Desde o dia que pôs os pés em Gramado (na terça) até o final do festival, ela "divou" absoluta na Serra Gaúcha, deixando claro pra todos, que ali estava uma atriz definitiva. Ela merecia ter levado um Kikito pra casa. O que se comentou a boca miúda é que houve um erro na indicação de Gilda, que concorreu como atriz protagonista, quando de fato seu personagem no filme é coadjuvante. A equipe do festival diz que o equívoco partiu da equipe do filme, e vice-versa. Saí de Gramado sem a certeza dos fatos. Mas creio que ela certamente teria ganho se houvesse concorrido na categoria certa; afinal, erro gera erros, como erre gera erres ..

Outras quatro obras dividiram os prêmios para longas-metragens brasileiros com ‘Ausência’: ‘O Último Cine Drive-In’/DF de Iberê Carvalho, ‘Um Homem Só’/RJ de Claudia Jouvin, ‘Ponto Zero’/RS de José Pedro Goulart e ‘O Outro Lado do Paraíso’, de André Ristum. 


‘O Último Cine Drive-In’ (crítica aqui) levou 4 prêmios importantes e foi o segundo longa mais laureado da noite. (1) Melhor filme pelo júri da crítica. (2) Melhor ator para Breno Nina (foto), que fez uma atuação memorável e estreia no CB [Cinema Brasileiro] com os dois pés direitos. (3) Fernanda Rocha, mulher do diretor, surpreendeu ao ganhar novamente como melhor atriz coadjuvante, pois já havia ganho ano passado no Festival do Rio. (4) Mas a surpresa maior foi o Kikito de direção de arte para Maíra Carvalho, irmã do diretor, que fez um trabalho sutil num filme naturalista onde o principal objetivo da direção de arte é fazer com que a arte não apareça.  Além da história de um cinema, ‘O Último Cine Drive-In’ conta também a história de uma família. O longa estreia comercialmente nesta quinta nas telonas de 11 cidades brasileiras. Tomara que faça o mesmo sucesso que fez em Gramado.

‘Um Homem Só’ levou os Kikitos de (1) melhor ator coadjuvante para Otávio Muller, que estava impagável no papel do amigo-âncora do protagonista; (2) melhor fotografia para Adrian Teijido, fotógrafo argentino radicado em São Paulo e internacionalmente premiado por ‘O Palhaço’, ‘A Busca’, ‘Gonzaga: de Pai pra Filho’, ‘Boca do Lixo’, ‘Onde Andará Dulce Veiga?’ etc; (3) e melhor atriz para Mariana Ximenes, irreconhecível como a ruivinha sardenta Josie que, além de ser a mocinha da história, serve de gatilho para as transformações que acontecem na vida do protagonista Arnaldo, vivido por Vladimir Brichta. Mariana só chegou em Gramado no penúltimo dia, mas já com pose de vitoriosa, distribuindo simpatia e iluminando o Palácio dos Festivais com seu sorriso genuíno. Fez a alegria de fotógrafos e fãs.

Mariana é também uma das produtoras associadas, e participou do projeto do filme desde sua concepção, feita a seis mãos com as amigas Claudia Jouvin e Maria Carneiro da Cunha. Como se pode ver, é um filme de mulheres que fala de homens .. melhor, de dois homens .. melhor, de Um Homem Só, que é ao mesmo tempo todos os homens do mundo. Vladimir é um ator de olhos tristes que sempre me comove muitíssimo, mas não esperava que fosse gostar tanto desse longa.  Me pegou de jeito ..


O Kikito de melhor atriz para Mariana Ximenes dividiu opiniões e provocou críticas severas ao júri oficial, por ser ela uma atriz muito associada a novelas da Rede Globo. O que pouca gente lembra (ou sabe) é que Mariana tem uma longa carreira no CB, já tendo brilhado em mais de 20 filmes de qualidade inquestionável e recebido elogios derramados de renomados realizadores. Em 2001 ela foi dirigida por Júlio Bressane em ‘Dias de Nietzsche em Turim’. Em 2002 ganhou três prêmios de melhor atriz coadjuvante por sua atuação em ‘O Invasor’ de Beto Brant. Em 2003 arrebatou as plateias com ‘O Homem do Ano’ de José Henrique Fonseca. Em 2004 esteve em ‘Histórias de Cama e Mesa’ de Maurício Farias e protagonizou o curta ‘Uma Estrela Pra Ioiô’ de Bruno Safadi. Em 2005 foi a vez de ‘Gaijin – Ama-me Como Sou’ de Tizuka Yamasaki e ‘A Máquina’ de João Falcão. Em 2006 foi protagonista em ‘Muito Gelo e Dois Dedos d’Água’ de Daniel Filho. Em 2008 esteve em ‘A Mulher Do Meu Amigo’ de Cláudio Torres. Em 2009 fez ‘Hotel Atlântico’ de Suzana Amaral e foi novamente protagonista em ‘Bela Noite Para Voar’ de Zelito Viana e ‘Quincas Berro d’Água’(2010) de Sérgio Machado. Nos últimos 5 anos ela só teve tempo pra fazer uma novela, pois simplesmente invadiu o CB nos ótimos ‘O Gorila’(2011) de José Eduardo Belmonte, ‘Os Penetras’(2012) de Andrucha Waddington, ‘O Uivo da Gaita’(2013) de Bruno Safadi, ‘O Rio nos Pertence’(2014) de Ricardo Pretti, ‘Um Homem Só’(2015) de Claudia Jouvin, ‘Zoom’(2015) de Pedro Morelli, Prova de Coragem de Roberto Gervitz, Depois de Você’(2016) de Marcus Ligocki, e ‘O Grande Circo Místico’(2016) de Cacá Diegues. É ou não é uma filmografia impressionante para uma atriz de apenas 34 anos ?? Benza Deus !!

O longa gaúcho ‘Ponto Zero’ de José Pedro Goulart levou os Kikitos de montagem (Federico Brioni) e desenho de som (Kiko Ferraz e Christian Vaisz). É um filme interessante que passeia entre o thriller de mistério e o terror psicológico. Também terá uma bela carreira pela frente.

‘O Outro Lado do Paraíso’ (que talvez seja o inferno), de André Ristum, levou um único porém importante prêmio: melhor filme pelo júri popular. Segundo longa brasiliense da mostra, usa uma linguagem comercial pra contar histórias da construção da capital federal e do golpe de 64, pela ótica de um menino. Em seu discurso de agradecimento, o autor e produtor Luiz Fernando Emediato fez um pronunciamento polêmico ao ecoar uma fala já ensaiada pelo produtor Luiz Carlos Barreto em defesa do “estado democrático de direito, que está ameaçado de golpe”, em alusão a um suposto impeachment da presidenta Dilma. De “imediato” um pequeno segmento da plateia irrompeu em aplausos, enquanto outro grupo, também pequeno, contra-atacou com vaias. A maior parte da audiência observou impassível.

Na minha opinião a maior “injustiça” na premiação da mostra competitiva de longas brasileiros foi ‘O Fim e os Meios’ (crítica aqui) não ter ganho nada. Seu diretor, o veterano Murilo Salles, que já havia faturado o Redentor de melhor roteiro no último Festival do Rio, esteve presente e atuante durante todo o festival, sendo um dos poucos cineastas a interagir diretamente com os críticos e jornalistas presentes, suscitando e aprofundando a discussão não apenas sobre seu filme, mas sobre o festival como um todo. Merecia um Kikito .. como o tradicional ‘Prêmio Especial do Júri’, por exemplo, que esse ano não foi pra nenhum longa. 


Entre os longas latino-americanos, o argentino ‘La Salada’, de Juan Martín Hsu, ganhou melhor filme tanto no júri oficial quanto no júri da crítica. O prêmio já era esperado pois o boca-a-boca consagrador tomou conta da cidade na noite em que o longa foi exibido. Outros 6 prêmios para produções em espanhol foram divididos entre o cubano ‘Venecia’ de Kiki Alvarez (melhor diretor, atriz e fotografia) e o mexicano ‘En La Estancia’ de Carlos Armella (melhor roteiro, ator e troféu Dom Quixote da Federação Internacional de Cineclubes). Já o colombiano ‘Ella’ de Libia Gómez Díaz foi eleito melhor filme pelo público de Gramado. Dos que pude ver, pinço como injustiçado nessa categoria o uruguaio ‘Zanahoria’ de Enrique Buchichio, que merecia voltar pra casa com pelo menos um Kikito.

Entre os curtas-metragens, ‘O Corpo’ foi o grande vitorioso, tendo participado das duas mostras de curtas do festival (a nacional e a gaúcha) e ganho o prêmio principal em ambas. Num ano com tantos curtas bons, acho que a premiação poderia ter sido mais contemplativa do que foi. Dos que vi, destaco dois “injustiçados” que mereciam ter levado ao menos um Kikito: ‘Muro’/SP de Eliane Scardovelli, e ‘Enquanto o Sangue Coloria a Noite, Eu Olhava as Estrelas’/SP de Felipe Arrojo Poroger. Sem falar de um que ficou fora da competição por ter descumprido o regulamento (adoro isso!): ‘Como São Cruéis os Pássaros da Alvorada’/MG, de João Toledo. Pretendo seguir vendo e comentando os curtas de Gramado nas próximas semanas. Ganhei alguns em DVD e de outros recebi o link + senha pra ver online.

Dos 14 curtas em competição, os 5 principais vencedores – com dois prêmios cada – foram: ‘O Corpo’/RS de Lucas Cassales (melhor curta e melhor fotografia para Arno Schuh); ‘O Teto Sobre Nós’/RS de Bruno Carboni (diretor e som para Tiago Bello); ‘Quando Parei de me Preocupar com Canalhas’/SP-GO de Tiago Vieira (roteiro e ator para Matheus Nachtergaele), ‘Dá Licença de Contar’/SP de Pedro Serrano (júri da crítica e prêmio Canal Brasil); e ‘Miss & Grubs’/SP de Camila Kamimura e Jonas Brandão (trilha musical para Felipe Junqueira e Samuel Ferrari, e direção de arte para Welton Santos). Outros 4 curtas marcaram presença com apenas 1 prêmio: ‘Bá’/SP de Leandro Tadashi (júri popular), ‘Virgindade’/PE de Chico Lacerda (montagem), ‘Herói’/SP de Pedro Figueiredo (atriz para Giuliana Maria) e ‘Haram’/BA de Max Gaggino (prêmio especial do júri).


A noite de encerramento foi tradicionalmente apresentada pela dupla Leonardo Machado e Renata Boldrini, e animada pela banda portalegrense ‘Rock de Galpão’ que, entre outros números, prestou homenagem a um saudoso músico, ator, autor e produtor do cinema nacional: o gaúcho Teixeirinha.

O Festival de Gramado dá panos pra manga e eu poderia escrever aqui mais uma dúzia de parágrafos .. Então, pra terminar, acho importante dizer que todos os longas brasileiros laureados foram beneficiados pela saída do páreo de ‘Que Horas Ela Volta?’/SP de Anna Muylaert (crítica aqui), que levaria muitos dos prêmios distribuídos se tivesse participado da competição. Para provar que num festival o mais importante não é ser premiado, ‘Que Horas’ voltou pra casa sem nenhum Kikito, mas foi um dos poucos consensos deste ano na Serra Gaúcha. Crítica especializada, público pagante e artistas convidados dessa vez convergiram em torno da mesma constatação: ‘Que Horas’ foi unanimemente consagrado como “o Melhor dos Melhores” do festival. Coisas da vida, e dos festivais de cinema.

Viva Gramado !!

Dario PR

AUSÊNCIA (2014/SP/87'), de Chico Teixeira - crítica por DarioPR



Quarto longa a ser exibido na mostra competitiva nacional aqui em Gramado, ‘Ausência’ usa os dilemas de um adolescente para falar não apenas da não-presença, mas também do vazio, da solidão, do abandono e da falta.

Através de uma história simples, de pessoas comuns, e sem propor tramas complicadas ou eventos melodramáticos, o filme começa costurando, com leveza corriqueira, um cotidiano banal em que “aparentemente” nada acontece. Aos poucos as subjetividades vão sendo invadidas e emoções recônditas são reveladas, desenrolando um tecido de sentimentos universalmente compartilhados, e provocando no espectador um olhar emotivo, silencioso; uma intimidade e uma identificação quase inevitáveis. Mais que um filme, uma pedra, preciosa.

Serginho é um menino de 15 anos que precocemente necessita tornar-se adulto. Ele vive numa periferia paulistana, onde trabalha numa feira ajudando seu tio, dono da barraca, e entregando verduras de bicicleta na casa dos clientes. Estuda, mas não costuma ir à escola. Tem dificuldade em aprender, é disperso, tem vergonha de sua caligrafia e já repetiu de ano algumas vezes. Mora com a mãe alcoólatra e o irmão caçula num pequeno e humilde apartamento. Seu pai sumiu de casa sem deixar rastro nem explicação, apenas ‘ausência’. Serginho assume então o lugar de homem-da-casa.

A mãe trabalha fazendo bolos para fora, mas é uma mulher distímica, beirando a bipolaridade: um dia está bem, amorosa, atenciosa, e no outro destrutiva, irritada, agressiva com os filhos. Ela gosta de beber em casa, sozinha, e nem sempre consegue concluir as encomendas. Sente-se um estorvo na vida do filho, tendo que ser amparada por ele, quando na verdade sabe que deveria ampará-lo.

Serginho é maduro pra sua idade, não rouba, não se prostitui, não usa drogas, ajuda em casa, cuida do irmão mais novo e das ressacas da mãe. Seus pensamentos refletem a angústia pelo sumiço do pai e o despertar da sexualidade. Gosta de passear de bicicleta enquanto faz as entregas, e de ir a um circo que está fazendo temporada no bairro. Nesse dia-a-dia sem fantasias, é nesse circo que ele encontra seu lugar de encantamento. 

A feira é onde Serginho conhece as agruras da vida, faz o trabalho pesado, sofre bullying de outro feirante, o Formigão, e vive numa tensão latente com seu chefe e tio Lazinho. Mas é também o lugar onde ele tem alguns amigos, como o Mudinho, um adolescente surdo-mudo que toma conta dos carros, e a Silvinha, uma japonesinha que trabalha na barraca de peixes. Mudinho e Serginho se entendem de uma forma muito peculiar, com gestos, cutucões, um pouco de leitura labial e muito silêncio. Mudinho é alegre, vivo; Serginho, mais contido, fala pouco. Porém com Mudinho ele solta um lado brincalhão e divertido, reparte suas fantasias sexuais e suas paqueras, principalmente por Silvinha, com quem desenvolve um vínculo afetivo-sensual.

Serginho tem um cliente especial a quem costuma visitar, o professor Ney, homossexual solitário que mora com uma cadelinha, Kenga, que o menino adora. Ele é professor de português, tem atração por rapazes mas não se deixa levar pelo desejo gratuito. É a pessoa com quem o adolescente se abre e confessa seus dilemas e mágoas. Ney escuta-o com respeito e um carinho quase paternal. Serginho tem fascinação e um enorme afeto pelo professor ..

O elenco brilha em cena. Matheus Fagundes, que na época das filmagens tinha apenas 16 anos, constrói um protagonista vigoroso, ambivalente e convincente, com quem é fácil se identificar. Não à-toa abocanhou o troféu Redentor de melhor ator no último Festival do Rio. Gilda Nomacce enche de densidade a Luzia, uma mãe disfuncional e antagônica, cujas atitudes seriam facilmente passíveis de sumária condenação. Não, nada é tão simples assim, e Gilda redime sutilmente a humanidade de sua personagem .. Dá vontade de levar pra casa. É uma atriz como poucas no Cinema Brasileiro, e desde já fortíssima candidata ao Kikito de melhor atriz coadjuvante (quiçá melhor atriz). Irandhir Santos nos brinda com mais uma atuação genial. Ao contrário do gay estereotipado de Tatuagem, aqui ele passa ao espectador todo o desejo homoerótico do personagem apenas na sutileza dos olhares, na força das intenções. Esplêndido.  

Direção, roteiro, fotografia, direção de arte, montagem, produção, finalização .. tudo nota mil. Mais um belo trabalho da Bossa Nova Filmes. A trilha sonora rara e competente é assinada por Kassin. Eu gostaria que o filme tivesse mais respiros musicais. No entanto essa é uma demanda pessoal minha, e poderia pôr em cheque a estética da “ausência” buscada pelo diretor.

Chico Teixeira durante muitos anos foi um importante e premiado documentarista brasileiro. Em 2007 lança seu primeiro longa de ficção, o inesquecível ‘A Casa de Alice’, que foi exibido em 63 festivais e ganhou 33 prêmios. Com ‘Ausência’ – segundo longa ficcional – ele retoma seu objeto de análise: a intimidade e crueza das relações humanas. Sua câmera é focada nos pequenos movimentos internos, prioriza os diálogos ligeiros e uma narrativa que se constrói através dos olhares, dos corpos e das mínimas ações, todas elas retratadas de forma quase documental, e enquadradas com a mesma abordagem incidental, sem criar hierarquia entre ações cotidianas e ações com função narrativa. Luxo !!

Num momento em que o Cinema Brasileiro tem se tornado tão televisivo, é um deleite assistir a um filme que sabe com precisão o que diferencia essas janelas, que intencionalmente se recusa a fazer concessões, e se orgulha de ser pura e simplesmente CINEMA. Só nos resta, comovidos, agradecer: Obrigado, gente, muito obrigado mesmo ..


.Dario PR

O ÚLTIMO CINE DRIVE-IN (2014/DF/100’), de Iberê Carvalho – crítica por Dario PR



O cinema no estilo ‘drive-in’ – pra quem não sabe: o que se assiste ao filme de dentro do carro – foi uma febre nas décadas de 60 e 70. Depois foi caindo em desuso, por razões mercadológicas que fazem com que certos empreendimentos durem mais e outros menos. Eu lembro de ter ido algumas vezes e de ter sido sempre uma experiência interessantíssima. Em algum momento da história os casais sem teto em busca de um lugar pra ficar “à vontade”, descobriram que o cine drive-in servia também como motel drive-in. Foi o começo do fim .. Agora, só resistiu um cinema drive-in no Brasil, em Brasília. É ele a principal locação/personagem do longa ‘O Último Cine Drive-in’, representante de Brasília na cena nacional do momento.

O roteiro conta uma história simples e aparentemente óbvia. O jovem Marlombrando (Breno Nina) retorna à capital federal depois de anos em busca de tratamento pra sua mãe Fátima (Rita Assemany), que tem câncer no cérebro. Lá ele reencontra seu pai, Almeida (Othon Bastos), dono de um cine drive-in em decadência onde Marlombrando passou sua infância. A mãe fica internada no hospital, e ele se hospeda na casa do pai, que fica no terreno do cinema. Lá conhece Paula (Fernanda Rocha), uma garota misteriosa que agora ocupa seu quarto e trabalha no drive-in como projecionista. A doença de Fátima se revela letal com expectativa de apenas dois meses de vida. O cinema, falido, acaba recebendo uma ordem de fechamento. Pai e filho precisam conviver mas amargam mágoas de um passado sofrido. E eis que Marlombrando retira do baú dos sonhos uma ideia que pode trazer alguma luz ao fundo do poço onde todos os personagens estão inexoravelmente caindo.

Um filme, singelo, poético, naturalista e despretensioso, que mescla inteligentemente ficção e documental, sem tentar pôr os gêneros lado a lado, mas fundindo-os numa coisa só. Brasília é um cenário onipresente onde os personagens se movimentam com desenvoltura e intimidade. A produção simples, mas bem cuidada e atenta aos detalhes, garante a credibilidade e o envolvimento da audiência com o filme.

O elenco, em estado de graça, oferece performances inesperadamente arrebatadoras. O maranhense Breno Nina, esplêndido como Marlombrando, mostra total intimidade com a câmera, seu protagonista consegue uma empatia tal com o espectador que é rara de se ver. Othon Bastos também surpreende num papel difícil que exige do ator o domínio das emoções contidas. E Fernanda Rocha arrebenta como a “operadora  cinematográfica” grávida que parece lésbica. No mais, todos os atores – incluindo as participações especiais – estão muito bem, íntimos dos personagens.

A direção de Iberê Carvalho (também assina roteiro e produção) é precisa, coerente – mais preocupada em pôr a plateia dentro do filme do que em exibir recursos estilísticos desnecessários – e consegue momentos de puro encantamento, como a cena em que Paula bate a poeira de um colchão velho, entre tantas outras. 

A trilha sonora original de Sascha Kratzer é outro elemento que tem resultado plenamente eficiente, embalando o filme com importantes momentos de respiro, reflexão e contemplação. E, finalizando, o capricho da finalização da O2 Filmes contribui para tornar ‘O Ultimo Cine Drive-in’ um filme muito agradável de se ver.

O espectador – mesmo o mais exigente – sai da sessão feliz ..


.DarioPR

O FIM E OS MEIOS (2014/RJ/105'), de Murilo Salles - crítica por Dario PR


Maquiavel em ‘Il Principe’ (1513) já defendia a premissa de que os governantes poderiam se colocar acima da ética e da moral vigentes para o intuito de realizar projetos e alcançar metas. Em 1645 o teólogo jesuíta Hermann Busenbaum escreveu pela primeira vez em seu manual de ética (Medulla theologiae moralis) a frase: “Cum finis est licitus, etiam media sunt licita” (Quando o fim é bom, também são os meios). Desde então a ideia de que os fins justificam os meios tem norteado a “ética” das relações entre dominadores e dominados.

A política mudou. Os políticos menos. A mídia já não perdoa os meios ilícitos, a opinião pública menos ainda, mas os poderosos sempre acham que podem ludibriar a opinião pública, comprar a mídia, ocultar os fatos .. Não por acaso – entra década e sai década – os escândalos de corrupção estão sempre na ordem do dia, e vez por outra adentram os filmes. É o caso deste ‘O Fim e os Meios’ (2014), de Murilo Salles, thriller político que vem embalado numa história de amor contemporânea, cheia de paixões e conflitos interiores, e recheada com fuga, perigo e morte.

Paulo e Cris são mais que um casal, são pólos imantados que se atraem e se repelem na mesma intensidade. Ela, jornalista, negra, linda, de origem humilde. Ele, publicitário, consegue emprego como gestor de imagem de um senador em campanha. O casal então se muda pra Brasília, dispostos a tentar resolver os impasses da relação. São personagens ávidos pela vida a ser vivida, com a disponibilidade que lhes confere a inocência e a ambição.

Em Brasília, estreitam a convivência com o inescrupuloso Hugo, genro e principal assessor do senador, inicialmente amigo do casal. Mas as pesquisas não favorecem o candidato, e Paulo se envolve em expedientes nada ortodoxos na reta final da campanha. Afetado diretamente por um escândalo midiático, ele acaba perdendo o controle de sua vida e sendo obrigado a “desaparecer”. Nesse ínterim, Hugo e Cris se apaixonam! A partir daí as emoções explodem, mudando radicalmente a vida dos três e desencadeando um jogo perigoso em que mídia e política convivem com os desejos e as fraquezas da relação homem e mulher.

Cintia Rosa e Pedro Brício defendem com unhas e dentes seus personagens, e conseguem passar a intensidade necessária para tornar críveis os protagonistas. Mas quem brilha numa atuação magistral é Marco Ricca (Hugo), construindo um antagonista envolvente e carnal, por quem é difícil não se sentir atraído. Há ainda boas atuações de Emiliano Queiroz (senador) e Hermila Guedes (filha do senador e mulher de Hugo). E uma participação pra lá de especial de Elisa Lucinda.

‘O Fim e os Meios’ não é um filme ‘fácil’ de se ver. Tem a clara intensão de incomodar, de se mostrar opressivo, testar a resistência do espectador. Há momentos em que o espectador põe em cheque a ética do autor. O roteiro, premiado, passou por exaustivos tratamentos. A narrativa é lenta, complexa, milimetricamente construída em elipses, flashbacks e flashforwards; começa pelo fim, depois sai a procura dos meios .. 

No momento atual do Cinema Brasileiro, fazer um filme ‘difícil’ é minimamente um ato de coragem. Nem todos os realizadores podem se dar esse luxo. Murilo é um que pode. Sua direção é minuciosa, quase obsessiva; abusando dos enquadramentos fixos, distanciados, onde apenas os personagens se movem. Em outros momentos busca referências no “cinema verdade”, tentando colocar o espectador no epicentro de um documentário jornalístico. A paleta de cores é sombria, quase sépia, quase cinza. E o mais desconcertante: o longa quase não tem música. Não respira nem nos deixa respirar. Mas apesar de incômodos, nenhum recurso de estilo está ali à-toa. Todos os “meios” são muito funcionais e eficientes no intuito de alcançar o “fim” desejado pelo diretor.

Um filme que merece ser visto com atenção redobrada .. Talvez nos fale que fins e meios são peças inseparáveis da mesma máquina. Se o fim é bom (ou mau), os meios também deveriam ser .. Ou não ?!



.Dario PR

INTRODUÇÃO À MÚSICA DO SANGUE (2015/RJ/95’) – crítica por Dario PR


Cinema é alquimia e mistério. Às vezes, uma união de fatores pra lá de improváveis apresenta como resultado um produto magnífico, o que é sempre uma ótima surpresa. Noutras, a junção de elementos tidos como ideais pode resultar num insuspeitado fracasso, e aí a decepção torna-se inevitável. 

‘Introdução à Música do Sangue’ é baseado num argumento do escritor Lucio Cardoso (Crônica da Casa Assassinada), um mago da literatura de introspecção psicológica; tem no elenco feras do porte de Ney Latorraca e Bete Mendes (foto), na trilha musical o mestre David Tygell, e na direção e roteiro o veterano e premiado Luiz Carlos Larceda, o Bigode, que desde dos anos 60 põe sua assinatura em diversas obras que são referência no cinema nacional (‘República dos Assassinos’, ‘Como Era Gostoso Meu Francês’, ‘Leila Diniz’, ‘Viva Sapato!’, entre muitas outras). 

A expectativa sobre o filme então era grande. Infelizmente o que se viu na telona do Palácio dos Festivais ontem beirou o constrangimento. Na hora de se fundir as partes pra compor a ‘culinária cinematográfica’, algum ingrediente errado fez a receita desandar e o prato final resultou um fiasco. 

A precariedade da produção (Matinê Filmes) já chama atenção a partir da primeira cena e parece ter sido o fator primordial a comprometer o conjunto. A partir daí, uma sucessão de equívocos vão levando o espectador a um descrédito no filme, desmontando um princípio básico e essencial da dramaturgia: a suspensão da incredulidade (suspension of disbelief). Sim! Pode ser um extra-terrestre voando de bicicleta sob uma gigantesca lua cheia  .. Tudo bem, contanto que o espectador acredite que aquilo é plausível na “realidade” daquele filme.

No caso deste aqui, o espectador tenta porém, mesmo fazendo todas as concessões possíveis, não adentra no ambiente campesino proposto pela história: uma família disfuncional vivendo num sítio sem luz elétrica perdido no interior de Minas. Os personagens não conseguem se encaixar com verossimilhança naquele cenário, carregando consigo os atores, que também não se enquadram. A dupla protagonista experiente e tarimbada busca inutilmente manter a coerência das emoções. A trilha musical é bonita, executada ao piano, com vários temas de Tom Jobim, mas não combina com o universo da película. O roteiro também não ajuda e caminha aos trancos e barrancos para o abismo final. E a pós-produção (montagem/edição/finalização) que é onde muitos filmes de pré- e produção precárias conseguem dar uma virada estratégica, não logrou pular do bonde do desastre anunciado. Resultado: o longa piora a cada cena. Uma pena.

Fiquei de ontem pra hoje me questionando qual teria sido a falha primordial que engatilhou o erro deste filme. Ainda não encontrei a resposta, mas levantei algumas hipóteses. Tenho pensado que no Cinema, assim como na Arte em geral, os autores deveriam conhecer de perto o objeto de sua obra, talvez ter certa intimidade com o universo sobre o qual estão falando (no caso aqui a vida rural), talvez falar sobre a sua aldeia .. Esse é um trunfo que pode ser útil quando se lida com recursos limitados: criar a partir do que lhe é próprio.

Infelizmente isso não acontece em ‘Introdução à Música do Sangue’. No entanto, se você é um espectador atípico como eu, que consegue apreciar a magia do cinema mesmo nos filmes ditos “ruins”, não deixe de conferi-lo. A experiência do erro carrega em si a semente do grande acerto. Eu desde já estou bem curioso pelo próximo projeto do Bigode ..

Dario PR

GRAMADO 2015 – SEGUNDO DIA – Por Dario PR


Mais um dia de sol e calor na serra. No Palácio dos Festivais a programação começa sempre às 10h. Quem perdeu os longas da Mostra Competitiva na noite anterior pode ver a reprise pela manhã. Quando o filme é muito bom, a gente encontra as mesmas pessoas bisando.

Às 14h do sábado teve início a primeira tarde da Mostra de Curtas Gaúchos. São 10 curtas no sábado e outros 10 no domingo, 19 deles concorrendo ao Prêmio Assembleia Legislativa, que há 11 anos fomenta novas safras da criação audiovisual no Rio Grande do Sul. Apesar da maior parte das produções estar concentrada em Porto Alegre, esse ano há curtas de São Leopoldo, Bento Gonçalves, Pelotas e Santa Maria. Um deles – ‘Por Entre As Frestas’(2015) – será exibido fora de competição, em sessão especial que homenageia a cineasta Luini Nerva, falecida este ano. A cerimônia de premiação acontece sempre na noite de domingo, é concorrida e festiva. A Mostra de Curtas Gaúcho é mais uma bela tradição que contamina o primeiro final de semana do Festival de Gramado com o ar fresco da juventude. É sempre muito bom vê-la. Axé e vida longa ..

A partir de 19h começam as sessões das mostras competitivas. O primeiro filme apresentado foi o curta paulista ‘Herói’, que mostra uma empregada doméstica (tema recorrente?) cuidando de um rapaz com distúrbio mental enquanto seus pais estão fora de casa. Bem interessante. Destaque para a atuação de Giuliana Maria. 

Na sequência mais um longa da mostra competitiva latina, o uruguaio 'Zanahoria' (cenoura em espanhol), baseado em fatos reais. Dois jornalistas são contatados por um misterioso informante do exército que “pretende” revelar provas sobre crimes nunca investigados da ditadura militar. Mas a revelação vai sendo sempre adiada, a paciência vai se esgotando e a paranoia toma conta. No entanto, a possibilidade de obter a informação é mais forte que qualquer suspeita.  Cesar Troncoso encabeça o elenco. Um ótimo filme. Trailer: https://youtu.be/yJ0q8N65GUc

Um intervalo para divar no tapete vermelho e às 22h o segundo bloco da noite começou com a entrega do Troféu ‘Cidade de Gramado’. Um Daniel Filho visivelmente nervoso mas absolutamente bem humorado revelou à plateia que sua grande paixão nunca foi produzir nem dirigir, mas atuar. E lamentou o fato de lhe convidarem pouco para essa função. Pode isso ?!

A seguir veio o melhor momento da noite: o curta paulista ‘Muro’ (2014), de Eliane Scardovelli, feito por um grupo de estudantes e sem nenhum orçamento, como trabalho de conclusão de curso da Academia Internacional de Cinema. O documentário é ambientado na “comunidade” Jardim Consórcio, zona sul de São Paulo, cujo terreno encontra-se cercado por condomínios de classe média alta. A separação entre os dois mundos se dá através de muros com cerca elétrica e concertinas. As crianças da favela assistem de longe às crianças dos prédios brincando nas piscinas e quadras. Os moradores vivem sob ameaça de despejo e acham que os habitantes dos condomínios estão se articulando com o poder público para retirá-los de lá. Os condôminos negam a acusação e aceitam visitar a comunidade acompanhando a equipe do filme .. Um curta ótimo, e não apenas por sua temática social, mas pela forma competente com que junta peças chaves de um quebra-cabeças cotidiano, transformando a realidade urbana num produto audiovisual bem acabado. Bom de se ver, refletir a respeito, aplaudir e premiar. Arrebatou a plateia do Palácio dos Festivais, merecidamente. 


Encerrando a noite tivemos o longa carioca ‘Introdução à Música do Sangue’ (2015/95’), de Luiz Carlos Larceda. E aí tem-se um fenômeno que foi o exato oposto. Um time de feras calejados e premiados conseguiu fazer um filme insosso que decepcionou a quase totalidade da audiência provocando bocejos, roncos e muita gente saindo no meio da sessão.  

Leiam a crítica completa na próxima postagem.
Até amanhã.



QUE HORAS ELA VOLTA (2014/SP/111’) de Anna Muylaert - crítica de Dario PR



‘Que Horas Ela Volta?’, de Anna Muylaert, é uma grata surpresa. E prova que um grande filme pode ser feito com simplicidade e singeleza quando se tem uma boa premissa, uma equipe afiada e uma mão experiente na direção. 

Muylaert debutou no Cinema Brasileiro em 2002 com o excelente ‘Durval Discos’ - uma ode à cultura do vinil com toques de humor negro - à época consagrado em Gramado com 7 kikitos, incluindo melhor filme pelo júri oficial, da crítica e do público. Em 2009 ela novamente arrebata a cinefilia nacional com o ótimo 'É Proibido Fumar', um drama envolvendo romance e suspense estrelado por Glória Pires e Paulo Miklos. Agora, seis anos depois, com vários títulos no currículo nas funções de roteirista, diretora e produtora, e transitando com presteza entre cinema e televisão, ela volta a deixar sua potente marca na cena fílmica brasileira com esse ‘Que Horas Ela Volta?’, sua melhor obra até agora, em que revela maturidade e domínio tanto da arte quanto da técnica de se produzir um bom filme. 

E aqui cabe ressaltar a função definitiva do roteiro na construção cinematográfica. Passam-se as décadas e ainda não se encontrou nada que possa substituir um bom argumento, construído com respeito à dramaturgia, partejado por personagens consistentes, num cenário convincente. Efeitos especiais, preciosismos estilísticos, verborragia intelectualoide .. nada disso funciona se o filme não está alicerçado nas vigas mestras da linguagem audiovisual. Em cinema, não dá pra sair inventando. Ou se sabe fazer ou não se sabe. Muylaert pertence ao time dos que sabem. 

A empregada doméstica Val (Regina Casé em performance absoluta) é uma mulher subserviente que se sente inferior às pessoas que a cercam .. Ela mora na casa de seus patrões, uma família de classe média alta paulistana, cuja figura dominante é a mãe Bárbara (Karine Teles, excelente), que por sua vez se sente superior às outras pessoas .. Val já trabalha há 13 anos como babá do adolescente Fabinho (Michel Joelsas [foto] de ‘Quando Meus Pais Saíram de Férias’). Mas tem uma filha que vive em Pernambuco e foi criada por parentes: Jéssica (Camila Márdila, fulminante), que não se sente superior nem inferior a ninguém, apenas igual a todo mundo ..

A mola-mestra da trama é justamente a chegada de Jéssica, que vem a São Paulo fazer vestibular pra arquitetura e se instala na casa da família, desequilibrando o status quo aparentemente estável das relações sociais ali imbricadas. Daí em diante o filme é só prazer e envolvimento, desfiando uma série de situações tão plausíveis quanto inusitadas, que prendem o espectador pelas entranhas, alternando e mesclando com sutileza momentos de reflexão e deleite, tudo num piscar de olhos. 

Impossível não pensar num diálogo entre ‘Que Horas’ e ‘Casa Grande’, de Filipe Barbosa, no que se refere à temática sócio-familiar e suas estruturas hierárquicas, especialmente na forma como ambos abordam a ambivalência das relações patrões-empregados no ambiente doméstico. Mas nada que possa ser pensado como plágio ou referência. Não. O diálogo aqui é mais sutil. Tem a ver com “estar antenado” às questões que são urgentes em nossa sociedade, que já não têm como ser adiadas e são determinantes pra que possamos avançar rumo a uma existência mais justa e solidária. 

Como ressaltou Muylaert ao apresentar sua obra em Gramado, ‘Que Horas’ é um filme sobre a arquitetura dos afetos nas relações de poder. Um longa que - embora político - busca a humanidade dos personagens e traz à luz regras separatistas invisíveis da cultura brasileira. Mas, acima de tudo, o filme propõe a utopia de que chegará o tempo em que o respeito pelo outro vai dar o tom das nossas interações sociais. Tomara !! 

O longa é leve, fluido, passa rápido, segura nossa atenção o tempo todo, e deixa no ar uma vontade boa de “quero mais”. Apesar de todas essas qualidades, em nenhum momento é pretensioso, e esse é um de seus maiores trunfos. É cotidiano e profundo como uma chuva de outono .. 

“É o projeto da casa, é o corpo na cama, é o carro enguiçado, é a lama, é a lama .. 
É um passo, é uma ponte, é um sapo, é uma rã, é um resto de mato na luz da manhã .. 

Viva o Cinema Brasileiro !!

DarioPR
08/Ago/2015

ps: filme visto na abertura do 43º Festival de Cinema de Gramado.