Coutinho conversa com nove adolescentes e uma criança.
Já não é mais um mestre. É um analista por vocação convicta. Nas questões da alma humana, é um mago. No cinema, um entrevistador mordaz. Consegue despertar nos entrevistados
emoções nunca dantes reveladas. Uma palavra sua basta para que lágrimas jorrem no
rosto das jovens atrizes-personagens.
Mas Coutinho não acredita nos adolescentes. Conhece suas
máscaras, desconfia de suas frases feitas e suas verdades per-feitas. Sabe que eles
encerram em si uma armadilha inequívoca: a certeza do porvir, e todas as
(des)venturas inerentes à passagem do tempo. Os adolescentes são espelhos biconvexos
a refletir, dum lado, arcaicos dogmas ancestrais, doutro, surpreendentes mutações
que reafirmam nossa crença no futuro da espécie. E esses nove jovens e uma criança
encontram respostas tão profundas e poéticas para as perguntas filosóficas da maturidade
(por que não dizer ‘da velhice’) de seu inquiridor que o deixam – e a nós
também – mudos, extasiados, perplexos ..
“Deus é o homem que morreu”, diz a criança na bucha. E a frase ecoa na mente e
na voz do cineasta. “O silêncio é tão estranho para o ser humano que pode
provocar a insanidade”, profetiza em outro momento um dos garotos.
Em seu último documentário Coutinho está velho, rabugento,
depreciativo, dispneico, enfisematoso. Faz perguntas sobre Deus, sobre Família, Amor
e Morte. É impossível desvincular as cenas do filme do trágico episódio que
marcou o final de sua vida. Uma questão torna-se imperativa: como admitir que um homem
deste quilate, com “poderes” de provocar discursos tão emocionados em seus interlocutores,
não tenha conseguido fazer seu próprio filho psicótico trocar a faca pela fala,
o silêncio pelo tratamento? Como entender que ele tenha morrido dessa forma, covardemente apunhalado aos 80 anos, vítima
de um dos crimes mais inquietantes da história universal: o parricídio? Sigo
aqui pensando onde estariam de fato esses “poderes” que lhe atribuímos. E que “poderes”
seriam esses, tão (in)visíveis em seus filmes. Talvez por agora seja melhor deixar
as respostas em suspenso ..
O que posso então dizer é que ÚLTIMAS CONVERSAS não foge à
regra. É mais um documentário de Eduardo Coutinho de profundo impacto estético, apesar de construído na mais absoluta simplicidade. Um único cenário: uma sala de
aula quase vazia; uma parede, uma porta e uma cadeira. E adolescentes brasileiros
escolhidos entre alunos da rede pública do ensino médio. Mas não se iludam, não
é um documentário sobre ‘educação’, nem sobre ‘adolescentes’. É um filme de ‘mistério’.
O mistério de existir.
Logo no início uma “novidade” em seus Docs, uma inversão de
papéis: o cineasta, assumidamente personagem, abre o longa na pele e na cadeira do
entrevistado. Desafiado por alguém da equipe ele confessa não estar
satisfeito com o material filmado, diz não acreditar nos jovens, que a
juventude não tem memória, que prefere as crianças. E ele segue até o final
como personagem protagonista, quase sempre em off, poucas vezes à frente da câmera, mas o tempo
inteiro em busca de um sentido para seu filme, como num making of dentro do
filme, ou num filme onde não seja mais possível a distinção entre filme e
making of, onde as palavras calam e o silêncio diz mais que todas as falas. O trigo e o joio já são uma coisa só.
Essa sofisticação dramatúrgica nos lembra que não estamos
diante de uma obra apenas de Eduardo Coutinho, há aqui o dedo-midas de João
Moreira Salles, varrendo os dilemas do diretor pra dentro do filme. Ao morrer em
fevereiro de 2014, Coutinho deixa 32 horas de
material gravado – resultado de 9 dias de filmagem – e um caderno com anotações
sobre o projeto, que então se chamava PALAVRAS e tinha incentivo do Governo do
Estado do Rio.
Produtor de todos os filmes do cineasta, herdeiro inconteste
do legado coutiniano e ele mesmo um dos maiores documentarista do país, Salles repensa,
renomeia e finaliza o projeto. Junto com ele está a editora
Jordana Berg, também "discípula" de Coutinho há duas décadas, responsável pela
montagem de quase todos os seus trabalhos, e personagem deste Doc naquela
primeira e decisiva cena. É ela quem, sentada à cadeira do diretor, repreende o cineasta
incrédulo e insatisfeito, tentando devolver-lhe as “chaves” perdidas de um
filme que está sendo renegado por ele como um pai que renega um filho. Ao final
dessa cena – que parece de making of – ouve-se a última palavra de Coutinho: CORTA
!! E aí voltamos às questões prementes:
que “chaves” são aquelas? Que “poderes” são aqueles? Quantas portas ainda podem ser abertas?
Terão eles encontrado as respostas? Há respostas
concretas para o mistério do cinema? E sobre os mistérios da
vida e da morte, quem ousa responder?
[Silêncio]
Que mais posso adiantar sobre este Doc? Melhor não dizer
mais nada. Apenas que ninguém deve deixar de vê-lo. Esqueçam a adolescência, a
educação, a vida e a morte. Simplesmente assistam ao filme. Está tudo lá. ÚLTIMAS
CONVERSAS fala por si, é um exemplar cinematográfico raro, um magnífico “trabalho em equipe”, obra-prima do gênero .. Um deleite para olhos, ouvidos, cérebros
e corações.
Dario P Regis