ÚLTIMAS CONVERSAS ( 2015 / Brasil / Doc / 85’ ), de Eduardo Coutinho e João Moreira Salles – por Dario P Regis



Coutinho conversa com nove adolescentes e uma criança. Já não é mais um mestre. É um analista por vocação convicta. Nas questões da alma humana, é um mago. No cinema, um entrevistador mordaz. Consegue despertar nos entrevistados emoções nunca dantes reveladas. Uma palavra sua basta para que lágrimas jorrem no rosto das jovens atrizes-personagens.

Mas Coutinho não acredita nos adolescentes. Conhece suas máscaras, desconfia de suas frases feitas e suas verdades per-feitas. Sabe que eles encerram em si uma armadilha inequívoca: a certeza do porvir, e todas as (des)venturas inerentes à passagem do tempo. Os adolescentes são espelhos biconvexos a refletir, dum lado, arcaicos dogmas ancestrais, doutro, surpreendentes mutações que reafirmam nossa crença no futuro da espécie. E esses nove jovens e uma criança encontram respostas tão profundas e poéticas para as perguntas filosóficas da maturidade (por que não dizer ‘da velhice’) de seu inquiridor que o deixam – e a nós também – mudos, extasiados, perplexos  .. “Deus é o homem que morreu”, diz a criança na bucha. E a frase ecoa na mente e na voz do cineasta. “O silêncio é tão estranho para o ser humano que pode provocar a insanidade”, profetiza em outro momento um dos garotos.

Em seu último documentário Coutinho está velho, rabugento, depreciativo, dispneico, enfisematoso. Faz perguntas sobre Deus, sobre Família, Amor e Morte. É impossível desvincular as cenas do filme do trágico episódio que marcou o final de sua vida. Uma questão torna-se imperativa: como admitir que um homem deste quilate, com “poderes” de provocar discursos tão emocionados em seus interlocutores, não tenha conseguido fazer seu próprio filho psicótico trocar a faca pela fala, o silêncio pelo tratamento? Como entender que ele tenha morrido dessa forma, covardemente apunhalado aos 80 anos, vítima de um dos crimes mais inquietantes da história universal: o parricídio? Sigo aqui pensando onde estariam de fato esses “poderes” que lhe atribuímos. E que “poderes” seriam esses, tão (in)visíveis em seus filmes. Talvez por agora seja melhor deixar as respostas em suspenso ..

O que posso então dizer é que ÚLTIMAS CONVERSAS não foge à regra. É mais um documentário de Eduardo Coutinho de profundo impacto estético, apesar de construído na mais absoluta simplicidade. Um único cenário: uma sala de aula quase vazia; uma parede, uma porta e uma cadeira. E adolescentes brasileiros escolhidos entre alunos da rede pública do ensino médio. Mas não se iludam, não é um documentário sobre ‘educação’, nem sobre ‘adolescentes’. É um filme de ‘mistério’. O mistério de existir.

Logo no início uma “novidade” em seus Docs, uma inversão de papéis: o cineasta, assumidamente personagem, abre o longa na pele e na cadeira do entrevistado. Desafiado por alguém da equipe ele confessa não estar satisfeito com o material filmado, diz não acreditar nos jovens, que a juventude não tem memória, que prefere as crianças. E ele segue até o final como personagem protagonista, quase sempre em off, poucas vezes à frente da câmera, mas o tempo inteiro em busca de um sentido para seu filme, como num making of dentro do filme, ou num filme onde não seja mais possível a distinção entre filme e making of, onde as palavras calam e o silêncio diz mais que todas as falas. O trigo e o joio já são uma coisa só. 

Essa sofisticação dramatúrgica nos lembra que não estamos diante de uma obra apenas de Eduardo Coutinho, há aqui o dedo-midas de João Moreira Salles, varrendo os dilemas do diretor pra dentro do filme. Ao morrer em fevereiro de 2014, Coutinho deixa 32 horas de material gravado – resultado de 9 dias de filmagem – e um caderno com anotações sobre o projeto, que então se chamava PALAVRAS e tinha incentivo do Governo do Estado do Rio.

Produtor de todos os filmes do cineasta, herdeiro inconteste do legado coutiniano e ele mesmo um dos maiores documentarista do país, Salles repensa, renomeia e finaliza o projeto. Junto com ele está a editora Jordana Berg, também "discípula" de Coutinho há duas décadas, responsável pela montagem de quase todos os seus trabalhos, e personagem deste Doc naquela primeira e decisiva cena. É ela quem, sentada à cadeira do diretor, repreende o cineasta incrédulo e insatisfeito, tentando devolver-lhe as “chaves” perdidas de um filme que está sendo renegado por ele como um pai que renega um filho. Ao final dessa cena – que parece de making of – ouve-se a última palavra de Coutinho: CORTA !! E aí voltamos às questões prementes: que “chaves” são aquelas? Que “poderes” são aqueles? Quantas portas ainda podem ser abertas?

Terão eles encontrado as respostas? Há respostas concretas para o mistério do cinema? E sobre os mistérios da vida e da morte, quem ousa responder?

[Silêncio]

Que mais posso adiantar sobre este Doc? Melhor não dizer mais nada. Apenas que ninguém deve deixar de vê-lo. Esqueçam a adolescência, a educação, a vida e a morte. Simplesmente assistam ao filme. Está tudo lá. ÚLTIMAS CONVERSAS fala por si, é um exemplar cinematográfico raro, um magnífico “trabalho em equipe”, obra-prima do gênero .. Um deleite para olhos, ouvidos, cérebros e corações.


Dario P Regis