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Tom Hanks como Zachry idoso no início do filme |
O longa-metragem Cloud Atlas
(2012) tem um título difícil de se traduzir para o português. O Atlas das
Nuvens, ou O Mapa das Nuvens .. Não sei. Mas me lembrou a brincadeira infantil
de olhar as nuvens e tentar decifrar a imagem que elas estão desenhando no céu
.. No final fica sempre constatado que a imagem decifrada tem mais a ver com o
desejo de quem olha que com o desenho real que a nuvem está a fazer, até por
que a nuvem, de fato, não está desenhando imagem nenhuma no céu. Talvez Cloud
Atlas tenha algo a ver com isso .. Talvez !!
O filme é a adaptação
do romance homônimo de David Mitchell. E adaptar uma obra literária para o
cinema é sempre um risco. A literatura envolve o leitor pela sugestão descritiva,
já o cinema precisa seduzir sensorialmente o espectador, pelo que ele escuta e
pelo que ele vê. A obra literária pode ter de 20 a 500 páginas, já a obra
cinematográfica precisa caber num tempo que costuma ir de 1 a 4 horas (estourando!)
e, caso exibida numa sala de cinema, deve ser vista do começo ao fim, sem
interrupção. Por essas e outras o próprio David Mitchell considerava o seu
livro “infilmável”, até que ele caiu nas mãos da atriz Natalie Portman, que o
apresentou aos irmãos Andy e Lana (Larry após a mudança de sexo) Wachowskis,
e deu no que deu ..
O título no Brasil é A Viagem, que não tem nada a ver com o título original, e ao mesmo tempo tem tudo a ver no sentido figurado, pois a história desse filme é mesmo uma grande ‘viagem’. Alguns colegas mais espiritualizados acham que o título em português é uma referência a uma antiga telenovela brasileira de Ivani Ribeiro sobre encontros e desencontros na vida de personagens ao longo de suas reencarnações. Será ?!
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Tom Hanks |
Cloud Atlas dura quase 3 horas e contem
seis tramas in(ter)dependentes que acontecem em distintos lugares no tempo – do
século XIX a um futuro pós-apocalíptico nuclear – mas que, em algum momento
histórico, ou em vários momentos ‘dramáticos’, podem se conectar. Por exemplo, cada
história gira em torno de um documento autoral [um diário, uma carta, um
artigo, um livro, uma história em quadrinhos, um filme] que foi confeccionado
em outra história e sobreviveu no tempo .. Outro exemplo: em todas as histórias
o personagem central tem marcado no corpo, como uma tatuagem ou um sinal de
nascença, a imagem de um cometa.
Não. As diferentes narrativas
(in)felizmente não convergem para um ponto de encontro, ao contrário, elas se
chocam aqui e ali num insondável quebra-cabeça cujo objetivo é desafiar a suposta
esperteza do espectador. E a meu ver, é justamente aí que reside o maior mérito
do filme: ele nos tira do mero lugar de audiência passiva, e nos obriga a
intervir ativamente com nossa inteligência para trazer sentido ao filme, ainda
que postumamente.
O longa começa tranqüilo. É fácil
acompanhar os saltos entre as histórias, pois eles inicialmente acontecem em
média a cada 10 minutos, cada história tendo seu estilo e se passando num tempo
cronológico único, com seus cenários, personagens e gênero próprios. Tudo
parece fácil nos minutos iniciais até que o elemento ‘elenco’ nos traz o
primeiro fator complicador. Os mesmos atores retornam em todas as histórias, na
pele de distintos personagens, com outra idade e até com outro sexo, nos fazendo
supor um elo subliminar unindo esses personagens. Não sei ainda. Mas isso me
parece mais um artifício usado para nos conduzir (espectadores) ao grande desafio
proposto: desvendar a linha invisível que costura as seis histórias
aparentemente díspares.
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Tom Hanks como Gerente do Hotel - Anos 30 |
"Nossa vida não nos pertence, desde o ventre até o túmulo
estamos ligados uns aos outros. Do passado ao presente, cada crime e cada
boa ação dá-nos um futuro diferente" .. Personagens conhecem-se,
separam-se e voltam a reunir-se em vários ciclos de vida e morte .. Cada uma
das histórias anuncia, revela e repassa a tese primordial da obra: a conexão entre
todas as coisas, e demonstra isso através de atitudes e ações que, feitas num
momento qualquer, repercutem na existência humana através do tempo, não só no futuro
mas também no passado .. Um gesto de bondade é replicado através dos séculos
até se tornar a mola-mestra para uma revolução .. Um ferimento impingido a
alguém pode gerar uma cicatriz que aparece centenas de anos antes na pele de
seus ‘ancestrais’ ..
Esses possíveis pontos de interseção
vão se revelando sutilmente nos instantes em que uma história ‘salta’ para
outra. Merece crédito o ótimo trabalho de montagem de Alexander Berner, pois é
nesse momento de corte, ou seja, num artifício de edição, que o filme vai tecendo
a sua outra história, que fica subentendida, e é o esqueleto comum das outras seis: uma historia de amor, de luta contra a opressão e em defesa da liberdade.
Cá entre nós, não é lá um roteiro
nada fácil de se filmar. E nem sempre nós, espectadores, conseguimos perceber as
inúmeras conexões propostas logo de cara. É um filme que precisa ser revisto, de
preferência várias vezes, voltar a cenas anteriores pra se tirar uma dúvida, e pausar pra uma reflexão ou um pit-stop,
antes de prosseguir. Enfim, é um filme cansativo pra se ver numa sentada só, e que
certamente terá muito mais adeptos quando sair em DVD ou Blu-ray.
Terminei o longa com a sensação
de ter ‘pescado’ algumas sacadas meta-filosóficas, mas também de ter ‘moscado’
em outras, talvez até mais óbvias. Meus tais colegas espiritualizados até
ousaram reconstruir a “linha reencarnatória” dos personagens entre as histórias. Pode até
ser que faça sentido, mas eu não consegui ver por esse prisma. A minha
nuvem desenhou o filme de outra forma. Eu percebi, por exemplo, a
repetição em todas as histórias do tema da Antropofagia, que aparece
escancarada no canibalismo dos tribais pós-apocalípticos, ou em formas mais
sutis, como na Coréia futurista onde os corpos humanos são processados industrialmente
e viram alimento pros demais. E até de modo simbólico na fala de um personagem
quando vomita a seguinte filosofia de botequim: “o fraco é a carne que o
forte come”.
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Tom Hanks como Isaak Sachs - Anos 70 |
Enfim, com tanta história pra
contar, pouco parece restar a dizer sobre esse filme enquanto peça
cinematográfica. A produção foi delicada e caprichosa, envolvendo 4 países (Alemanha
/ EUA / Hong Kong / Singapura), rodada em locações na Escócia,
Alemanha e Mallorca, e com orçamento estimado em 100 milhões de
dólares. Ótimos efeitos especiais, produção de arte, cenografia e fotografia, além de magníficas
atuações, sendo o elenco responsável por grandes momentos ao longo do filme. Além do trabalho magistral de Tom Hanks, merecem destaque as performances marcantes de Halle Berry, Ben Whishaw, Doona Bae, Hugo Weaving, Jim Broadbent, Jim Sturgess, Keith David, Susan
Sarandon, Hugh Grant ..
Indumentária, cabelos e maquiagem representam
um fator chave na credibilidade passada pela maioria dos personagens. Em alguns
casos o ‘visagismo’ funciona eficazmente. Em outros, principalmente do meio pro
fim, quando o artifício do disfarce já se torna lugar-comum na narrativa,
falhas técnicas começam a ficar mais visíveis, principalmente nas máscaras,
comprometendo – um pouco – a imagem de alguns personagens.
Três das histórias são dirigidas
por Tom Tykwer (Corre Lola Corre / Perfume – A História de um Assassino) e
outras três pelos irmãos Wachowskis (saga Matrix / Speed Racer). Depois de um
certo tempo fica fácil diferenciar que histórias são dirigidas por quem, pois os
trabalhos não se misturam, e cada direção mantem seu estilo inconfundível. O
trio merece o mérito por ter conseguido concretizar um projeto tão arriscado, e
pelos momentos de inesperada poesia cinematográfica que alcançaram nesse
percurso.
Fica-nos a sensação de ter testemunhado
uma meditação estética sobre a humanidade, uma experiência sensorial tempestuosa,
universal e subjetiva, histórica e atemporal, por enquanto única no cinema dos dias de hoje. Filme para cinéfilos, com pretensões a cult, que ainda vai ser
assunto de muito bate-papo poraí .. Não vejo a hora de ter o Blu-ray pra desvendar
todas as ‘suas’ tramas, ou desenhar todas as ‘minhas’ nuvens ..
grande abraço
.DarioPR
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Tom Hanks como Dermot Hoggins. Que época mesmo era essa ?? |
PS> Eis aqui uma possível sinopse
de cada uma das seis histórias, ressaltando que elas perdem consistência quando
olhadas separadamente, mas adquirem novos sentidos quando entrecortadas e
entrelaçadas no contexto de uma história maior, a espera de ser contada, pelo
espectador.
(1) Um diário de 1849 de uma viagem marítima através
do Pacífico .. Adam Ewing (Jim Sturgees) é um advogado enviado pela família
para negociar a comprar de novos escravos. No retorno para casa ele salva o
escravo Autua (David Gyasi) que está fugindo de Henry Goose (Tom Hanks), um
médico que o envenenou.
(2) Cartas de um compositor para seu namorado .. Em
1930, o jovem e talentoso compositor Robert Frobisher (Ben Whishaw) ajuda o
também compositor já idoso Vyvyan Ars (Jim Broadbent). São eles os responsáveis
pela composição da sinfonia Cloud Atlas, que dá título ao filme.
(3) Um thriller sobre um assassinato em uma usina
nuclear .. Em 1970, a jornalista Luisa Rey (Halle Berry) conhece Rufus Sixmith
(James d'Arcy) quando o elevador em que ambos estão quebra. Tempos depois ele a
procura para revelar que estão encobrindo uma série de falhas no projeto de
construção de um reator nuclear.
(4) Uma farsa sobre um editor numa casa de repouso ..
Nos dias atuais, Timothy Cavendish (Jim Broadbent) é dono de uma pequena
editora que lançou um livro que dificilmente dará retorno financeiro. Mas a
situação muda quando o autor do livro mata um de seus críticos, tornando-se uma
celebridade instantânea.
(5) Um clone rebelde numa sociedade futurista ..
Coreia do Sul (agora chamada de Nova Seul). Sonmi-451 (Donna Bae) é um
clone que trabalha em um restaurante fast food. Ela foi programada para
realizar todo dia as mesmas tarefas, sem manifestar qualquer insatisfação, mas
a situação muda quando outro clone a faz dar-se conta de sua existência
medíocre.
(6) Futuro distante. Nesta época vive Zachry (Tom
Hanks), o líder de uma tribo que venera Sonmi como se fosse uma deusa. Sua vida
muda quando Meronym (Halle Berry), que integra um grupo evoluído chamado
Prescients, lhe pede para viver com sua tribo. A Terra foi vítima do holocausto
nuclear e está imersa numa realidade pós-apocalíptica tribal .. Futuro e
passado se encontram ..
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Tom Hanks como Zachry e Halle Berry como Meronym num futuro pós-apocalíptico |