Quando o amor atravessa o caminho da morte, ele pode até não
impedi-la, mas ressignifica essa morte e, quiçá, aquela vida ..
Numa clínica psiquiátrica, o amor do adolescente-esquizoide
João invade a morte da balzaquiana-radical-chic Judite, fazendo dessa morte um
ato de redenção e coragem. HIV+ e usuária compulsiva de múltiplas drogas, a moça tem uma pulsão autodestrutiva que a leva certeira ao irremediável
encontro com o nada. E ela tem
pressa de chegar. Ele, um garoto virgem que cai na clínica por ter abusado do
ansiolítico da mãe, ganha o bônus vital de descobrir o amor, e em seguida o
ônus irreparável de perdê-lo. Por fim, lhe cabe a barra pesada que é continuar vivo,
e seguir adiante. Só nos resta desejar-lhe “Boa Sorte” ..
Não por acaso este é o título do primeiro longa de ficção de
Carolina Jabor, com roteiro de Jorge Furtado e do filho Pedro, baseado num
conto de Jorge chamado “Frontal com Fanta”. Aliás, a combinação do comprimido
tarja-preta com o refrigerante alaranjado é a receita mágica usada por João
(depois também por Judite) para ficar “invisível”.. Julgando-se "invisíveis" eles
aprontam poucas e boas, e acabam por nos ensinar algo mais profundo acerca do que seja a “(in)visibilidade”.
Não é Cinema Argentino nem nada, mas está no roteiro o maior
trunfo do filme. Com um arco dramático bem construído, diálogos sutis e
tiradas filosóficas precisas, ele consegue o feito raro de inserir humor
refinado em meio à grande tragédia da existência humana. A instituição psiquiátrica
é eviscerada em suas idiossincrasias e violências mais prementes, tais como o
sistema punitivo truculento, a corruptibilidade dos funcionários, a fragilidade
dos ‘diagnósticos’ e os tratamentos equivocados. Ao mesmo tempo o roteiro coloca
o ambiente manicomial como um palco de possíveis encontros, o que de fato é. A
clínica em si podia ser uma personagem mais consistente na trama, e sua fauna de
doentes mentais devia interagir melhor com o casal protagonista. Isso faz
falta. Mas o que seria um defeito enorme num pequeno filme, termina por revelar-se
um defeito minúsculo num grande filme.
O elenco nos surpreende. Fernandona chuta o balde em duas rápidas aparições fazendo a avó maconheira de Judite. Está melhor que nunca! Cássia
Kis Magro e Enrique Diaz também garantem bons momentos como a médica dona-da-verdade e o enfermeiro trambiqueiro da clínica. No entanto o maior mérito é mesmo da dupla protagonista – Deborah
Secco e João Pedro Zappa – pela intensidade da entrega que fazem ao filme e a
seus personagens. Estão ambos impecáveis. Miss Secco, que também responde por uma
co-produção, faz seu melhor
trabalho até agora. Supera sua já excelente atuação em Bruna Surfistinha, colocando-se como uma estrela de cinema em franca ascensão.
A direção elegante de Carolina Jabor consegue imprimir sua
assinatura na tela, com tomadas inteligentes, enquadramentos precisos, bom
aproveitamento dos espaços cenográficos e, principalmente, o uso criativo e
eficiente de clichês da linguagem fílmica. Há diversos momentos antológicos, como a ótima cena de sexo na
lavanderia, em que uma velha e manjada fórmula cinematográfica – a voz em off
narrando o pensamento dos personagens – é usada de maneira bastante inusitada
e pertinente. Um luxo !!
Por fim, a direção de arte de Cláudio Amaral Peixoto se
revela funcional na simplicidade. O efeito de animação que nos desvenda o diário de Judite é mais um exemplo de clichê bem utilizado. A banda sonora e a trilha musical também compõem
um painel de áudio que contribui para a dramaturgia e agrada os ouvidos, com destaque para a alegre “Talk To Me” da canadense Peaches e a ótima “O Vampiro”, de Jorge
Mautner, na voz eternizante de Caetano Veloso.
A dupla Conspiração/Globo Filmes, após vários descompassos,
acerta o alvo ao apostar numa produção menos popular, com ares de cinema
independente e foco no que realmente interessa: a qualidade. Carolina Jabor –
que também assina a produção ao lado de Eliana Soárez – demonstra que tem algo
mais que um DNA ilustre, e já desponta como uma cineasta promissora na árida seara que é o Cinema Brasileiro contemporâneo. Em “Boa Sorte” ela nos brinda com um
produto singelo e despretensioso, porém afiado e antenado, como todo bom filme deve
ser. Benvinda .. E Boa Sorte !!
Dario PR