DOGVILLE ( 2003 / Suécia etc / drama / 178’ ) de Lars von Trier – por José Roberto de Oliveira


Trata-se de um filme que como toda grande obra de arte admite muitas formas de compreensão e interpretação. Uma análise sociológica já feita por vários autores considerando ângulos diferentes desse mesmo foco permitiria dizer que se trata de uma crítica nem tão velada assim aos EUA, no sentido de retratar a forma intolerante como praticam seu poder e liderança sobre o resto do mundo. Diversas considerações e ilações filosóficas e psicológicas podem ser efetuadas. O que importa é que é um filme acachapante, que merece ser estudado em detalhes.

Existe um making of sobre a forma como seu diretor conduziu o processo de filmagem, alugando um galpão nos arredores da cidade e mantendo o grupo de atores em trailers, meio confinados, objetivando colocar em prática a sua visão sobre interpretação: não "representar" o personagem, mas efetivamente tornar-se, "ser" o personagem. Tanto que Nicole Kidman após a cena do estupro ficou mal a ponto de ter uma crise de choro intensa. Construíram uma espécie de confessionário no set, parecido ao que existe em realities como o Big Brother. Há um registro do depoimento da Nicole Kidman dizendo que passou a nutrir sentimentos negativos frente ao diretor, que nunca mais trabalharia com ele.

Muito interessantes as soluções cinematográficas conseguidas, os movimentos de câmera estranhos, o cenário absolutamente clean, ou melhor dizendo, a ausência de cenários, as inúmeras citações visuais e sonoras, a genialidade de fazer uma espécie de teatro filmado, com um clima conceitual, Brechtiano.

Deixando de lado as interpretações sociológicas, eu diria que o filme é uma metáfora sobre o surgimento e desenvolvimento dos conteúdos emocionais e intelectuais na conduta humana desde o seu começo até sua degradação, nas pessoas que fazem parte daquele lugarejo nas Montanhas Rochosas dos EUA, mas que poderia estar posicionado em qualquer lugar do mundo. O filme versa sobre quais são esses sentimentos e ideias, tenta explicar sua origem e mostrar seu desenvolvimento.

Frequentam aquele esboço social, aquela alegoria sobre a sociedade em geral, cerca de 15 pessoas que, de repente em suas vidas, veem-se na contingência de acolher alguém estranho, uma mulher lindíssima, que chegou ao lugar fugindo de algo desconhecido e atemorizante para eles. Acabam aceitando conviver com ela por duas semanas, em uma votação difícil porém unânime. A partir daí, todos os valores e comportamentos de adaptação da comunidade são colocados em cheque.

A situação lembrou-me muito em várias ocasiões os textos de um grande psicanalista inglês, um dos grandes pensadores da psicanálise, Bion, que procedeu a detalhadas análises exatamente sobre isso: grupos. As motivações individuais, diga-se, a somatória pulsional individual que se estrutura no convívio entre pessoas, a resultante final dessa somatória, o tipo de clima que vai se estabelecendo com o progresso desse convívio e com o entrelaçamento das resultantes pulsionais dos diversos membros do grupo. Os diferentes papéis que as pessoas acabam representando, as angústias, os desejos, os medos, a agressividade, complementares às vezes, a formação de "panelas", a cumplicidade, o comprometimento e às vezes a falência total do comportamento ético.

No filme, como frequentemente nos grupos humanos, existe até uma inversão total de valores, a catarse do final onde a "justiça", a filosofia ideológica enfim, o pragmatismo justiceiro, é praticado exatamente pelos gangsteres e não pelos responsáveis pela aplicação da justiça.

As propostas ideológico-filosóficas feitas sobre as desejáveis metas da comunidade por um dos personagens principais, uma espécie de líder, meio que incomodam aquele pessoal. É ele que introduz a estrangeira em Dogville. Costuma fazer reuniões tentando convencer as pessoas de assuntos que considera importantes, em função de sua ideologia existencial. Com a entrada em cena da estranha, passa a funcionar como uma espécie de observador do grupo. Fica totalmente passivo, aceitando o desenrolar dos acontecimentos, não assumindo nada, nem seu amor pela estranha, por causa do desejo meio vago de encontrar seu tema para se tornar enfim escritor. O não saber como manejar a agressividade crescente dos outros, deixa claro essa falta de "liderança pragmática", se é que podemos chamá-la assim, o oposto do que acontece com um líder pragmático com um objetivo, Moisés por exemplo, que sabe exatamente como e para onde conduzir seu povo.

Aliás, interessante como outra metáfora, o cachorro do filme (dog of the ville) se chama exatamente Moisés. Observe-se que ele é simbolizado apenas, não tem existência concreta. O lugar em que deveria estar é riscado no chão, como nos filmes policiais em que o risco mostra onde se encontrava o cadáver. O líder, no sentido da liderança pragmática praticada por Moisés, não existe na comunidade, pois o líder de Dogville por sinal nem foi eleito, é aceito provisoriamente, muito menos pelas suas qualidades que pelas necessidades dos liderados, exatamente como já constatara Bion sobre os líderes emergentes nos grupos humanos.

Os membros daquela comunidade não sentem necessidade afetiva nem cognitiva num primeiro momento, muito menos veem vantagem em relacionamentos interpessoais, daí sua falta de motivação às reuniões. As pessoas demoram um pouco para estruturar seus desejos quando colocadas em um grupo, fenômeno também observado e analisado por Bion.

O personagem que organiza as reuniões "democráticas" é tão abúlico e sem pragmatismo que faz pensar que poderia ser um portador da doença mental muitas vezes não constatada pela população, conhecida como Esquizofrenia Simples. Mesmo assim, exatamente como inúmeros mendigos da cidade grande, que se excluem do convívio social, que não tem proposta nenhuma para nada, muito menos propostas sociais, que não fazem absolutamente nada, têm apenas vagas idéias que nunca se concretizam, ele perturbava todo mundo com propostas pseudo-filosóficas que ninguém achava interessantes. E, no entanto, iam às reuniões. Todos precisamos de líderes, mesmo quando não queremos nada ou não temos objetivos. Parece se tratar de uma característica humana.

Enfim, como toda grande obra de arte, repito, admite muitas formas de compreensão e interpretação. A maneira como a Nicole Kidman arrasta aquele peso acorrentado ao seu pescoço, sua resignação com os acontecimentos, faz lembrar Cristo carregando sua cruz. Existe aí a citação de um fato religioso, porém com desfecho totalmente diferente. Também, como no proporcionado pela Paixão de Cristo, humano, excessivamente humano.


José Roberto de Oliveira