SOB A NEVE (Under Snow/ Unter Schnee/ 2011/ Alemanha/ doc/ 108’) - por Cristina Paraguassu.


A direção, roteiro e câmera são da lenda-viva Ulrike Ottinger. Uma fascinante viagem ao âmago da cultura japonesa. É documentário, ficção, vídeo-arte, teatro Kabuki, ou nada disto, é cinema em todas as suas possibilidades, sem preconceitos.

Tarkovsky em seu magistral livro "Esculpir o Tempo" diz que o cinema é uma arte ainda em formação cuja matéria é o tempo. E Ulrike Ottinger, apesar de ser alemã, esculpe os tempos do Japão com talento ímpar.

Chegamos à aldeia de Echigo dentro de um trem, provavelmente um shinkansen (trem-bala), de onde vemos a neve. Nesta região há neve quase o ano todo. O dia-a-dia é mostrado delicadamente, a comida, banho, rituais, brincadeiras infantis, limpeza da espessa camada de neve, sob a qual estão todas as eras ancestrais do país.

Dois estudantes - Takeo e Mako - representados por dois performers de Kabuki (Takamasa Fujima e Kiyotsugu Fujima), chegam à aldeia. Seguem os passos de Bokushi Suzuki, autor do livro Contos do País da Neve (séc. XIX). Uma raposa os desvia e eles se metamorfoseiam em um homem e uma mulher do período Edo. Esse casal tem um filho que se torna um famoso ator. Depois, por inveja do Imperador, ele é banido para a ilha de Sado, famosa por belos e tristes poemas, inclusive o de Bashô: "rumo à ilha de Sado/ sobre o mar revolto/ a Via Láctea”. O mar azul com suas ondas é contemplado por bastante tempo. Afinal, o Japão é um arquipélago.

"Kabuki, poesia e realidade do País da Neve, embalados pela música de Yumiko Tanaka, fazem deste um impressionante filme", diz Ottinger. O respeito e amor que ela tem pela cultura oriental, que começou quando era criança, é explícito numa cena de teatro Kabuki: toda ela em japonês sem legendas nem narração. Somente depois a narradora Eva Matters nos traduz. Dessa forma podemos apreender os detalhes da atuação e entonação das vozes sem dispersar a atenção.

A cultura japonesa milenar carecia desta homenagem e todos nós merecemos esta viagem cinematográfica. Verdadeira obra de arte. 

Cristina Paraguassu