Quem acredita que a principal função do cinema documentário
é abordar temas da realidade de maneira didática certamente não conhece os
filmes de Eduardo Coutinho. Seja registrando a vida de moradores de uma favela
as vésperas do ano novo (Babilônia 2000), de um prédio de conjugados em
Copacabana (Edifício Master), a classe operária do ABC paulista (Peões) ou uma
comunidade rural no sertão da Paraíba (O Fim e o Princípio), o que se revela é
um projeto autoral pautado na espontaneidade dos depoimentos e a fabulação
resultante desse processo. Em suas próprias palavras: “não é a verdade ou a
mentira que interessam, mas sim o imaginário.”
Coutinho afirmava que “ao se aproximar mais do real o
documentário vira ficção”. Com isto não estava apenas problematizando as tênues
fronteiras entre documentário e ficção, mas revelando que seu verdadeiro
interesse consistia na potência dramática do que era narrado pelos personagens. Pouco importando se as histórias eram reais ou não. Uma vez
narradas, elas já não mais pertencem aos seus contadores, elas são
do mundo.
Mesmo fazendo filmes sem roteiros, Coutinho nunca negou que
cinema é sempre construção. Em Jogo de Cena é a edição que estabelece as
regras do jogo, criando paralelismos entre o depoimento real e a repetição do
mesmo depoimento representado por atrizes profissionais. Depois embaralha tudo
ao acrescentar depoimentos representados por atrizes desconhecidas e histórias
reais de atrizes famosas. São histórias de perdas, abandono e sonhos partidos
que em conjunto aproximam o registro documental do melodrama.
Ao mesmo tempo em que instiga o espectador a distinguir o
depoimento real da representação, Jogo de Cena busca provocar identificação com as
histórias contadas, dessa forma quebrando as barreiras entre o cinema mental (que
estimula o raciocínio) e o cinema catártico (que atinge a emoção). Aqui tal
efeito é atingido a partir de uma notável economia de recursos: uma cadeira num palco, uma
plateia vazia ao fundo, enquadramentos estáticos. Engana-se quem acusa o filme
de utilizar uma estética televisiva. Seus rostos filmados em close se aproximam
menos da assepsia dos telejornais e mais da potência de clássicos como “A
Paixão De Joana D'Arc” de Carl Dreyer, marco do cinema mudo francês
constituído quase que exclusivamente de closes.
A emoção que estes rostos carregam independe da legitimação
do real. A representação quando dotada de verdade cênica carrega em si a mesma
humanidade. Não é por acaso que Coutinho elegeu um teatro como cenário de seu
filme. Não bastassem as emoções e reflexões que provoca, Jogo de Cena consegue ainda prestar um belo tributo ao ofício do ator.
Ao lidar com fronteiras tão tênues quanto as que separam
realidade e ficção, depoimento documental e melodrama, Coutinho realizou um
filme que é a síntese de sua carreira e de quebra nos entregou mais uma
obra-prima.
Thiago Sardenberg