David Cronenberg é canadense de Toronto, tem 72 anos
completados recentemente, é casado e pai de 3 filhos. Sem o Cinema, receio que
seria mais complicada tal organização em sua vida: independente de se gostar ou
não, seus filmes parecem buscar (e sublimar) os abismos mais temíveis desse
mundo, na esfera social e também na intimista. E é sem hesitar que ele usa e
abusa da náusea tanto na forma quanto numa quase ‘marca registrada’. Para seus
adeptos mais fervorosos, motivo de regozijo. Para seus detratores, a
constatação de um vício inadequado, de um ‘excesso de assinatura’ (se costuma
dizer quando a mão de um realizador pesa em demasia sobre sua obra), como
acontece nos banhos de sangue de Tarantino ou nas caricaturas de Fellini. No
entanto, como o Cinema exige trabalho em equipe, para o bem ou para o mal, não
é sempre que prevalece o desejo do realizador em todas as vertentes da
produção.
Partindo das origens do diretor, após alguns curtas e diversos
projetos para TV, como é praxe no Canadá, adentrou desde então no estilo que
predominaria por décadas: basta espiar as sinopses de seus primeiros longas
para ‘entender o recado’. De minha parte, após “Scanners”/1981, “Videodrome”/1983
e “A Hora da Zona Morta”/1983 (sobre livro de Stephen King), já ficara evidente
a linha mestra que logo seguiria com “A Mosca”/1986. Na época, uma vinheta
televisiva sobre a reação de espectadores na saída da estreia do filme causava
risos e traçava o reconhecimento que o tempo só iria referendar: Cronenberg
encontrara seu público.
Por mera sorte ou por uma feliz soma de talentos, logo viria
a obra-prima “Dead Ringers”/1988, aqui “Gêmeos – Mórbida Semelhança”,
roteirizado pelo diretor junto a Norman Snider, sobre livro de Bari Wood e Jack
Geasland. A partir de um fato real – dois ginecologistas bem sucedidos de
Montréal, gêmeos idênticos, foram encontrados mutilados e trucidados em seu apê
–, a trama especula (e como!) acerca da linha de acontecimentos que teria
levado à tragédia. Entre perversões sexuais, abuso medicamentoso e descaminhos
existenciais, acompanhamos um processo de esquizofrenia paranoide – tema
imortal em Arte, por suas vastas nuances – que martiriza um dos gêmeos. Um
festim de prevaricações e iniciativas ilícitas é pontuado por rasgos de conduta
doentia, sobretudo por parte de um dos gêmeos, que de resto conta sempre com o
aval do mano...
Não cabe aqui entrar mais no brilhante desenrolar e
desfecho, seria um spoiler para quem pretenda assistir. Porém jamais Cronenberg
seria tão acurado, harmônico e brilhante em sua carreira, até os dias atuais!
Ademais, Jeremy Irons nos brinda de todo ao contracenar consigo mesmo, além de
com as maravilhosas Geneviève Bujold e Heidi Von Palleske. Assim como o tom da Fotografia
de Peter Suschitsky encontra sempre o equilíbrio perfeito entre a ‘normalidade
social’ e a cisão psíquica dos gêmeos em seu desmantelamento pessoal.
Viriam então o aceitável “Naked Lunch”/1991 (aqui “Mistérios
e Paixões”), roteirizado sobre William Borroughs, ensaio maldito resvalando no
surreal; o tocante “M. Butterfly”/1993 – outro de meus favoritos! –, uma
adaptação em variante sobre a peça que também origina a consagrada ópera, onde
um diplomata (outra vez Irons) se envolve “sem saber” com uma gueixa-travesti
(John Lone); e uma recorrência a náuseas mais abundantes em “Crash”/1996
(“Estranhos Prazeres”), abordagem em necrofilia, e “existenZ”/1999, digressão
em videogames e na indústria de jogos eletroeletrônicos.
Já na virada do século, após uma abordagem boa e quase
psiquiátrica (de novo) da esquizofrenia paranoide em “Spider’/2002, defendida
por Ralph Fiennes, dois filmes estrelados por Viggo Mortensen dão sequência: “A
History of Violence”/2005 (“Marcas da Violência”) e “Eastern Promises”/2007 (“Senhores
do Crime”), ambos com animados defensores mas nos quais não vejo o brilho do
realizador.
“A Dangerous Method”/2001 (“Um Método Perigoso”) traz 4 anos
depois um Cronenberg ‘domesticado’ pelo excelente roteirista Christopher
Hampton. Abordando a criação da psicanálise sem sisudez, Hampton faz gostosas
blagues e provocações com os prumos & rumos do método instituído por Sigmund
Freud (outra vez Viggo), e sua conturbada relação com Carl Gustav Jung (Michael
Fassbender). Sem incidir nos excessos habituais, aqui a náusea cabe em seu
devido lugar. Já ouvi de fãs do Cronen: “não parece um filme dele!” (hehehe)
O horrendo e indefensável “Cosmópolis”/2012, a seguir, é um
engano único. O naufrágio é tamanho que sequer a Rainha Suprema das atrizes, a
inigualável Juliette Binoche, justifica sua presença: nele perde seu tempo e
cansa sua beleza no modorrento táxi que atravessa Manhattan. O recente “Maps to
the Stars”/2014, no entanto, embora não figure entre meus preferidos dele, tem
seu jeitão. Lá está o lado maldito de Hollywood, cambado até a náusea e
dividindo opiniões.
E cá estamos. Acho difícil que ele retorne à excelência de
“Dead Ringers”, mas nunca se sabe... E como ninguém é gênio de plantão, tenho o
realizador em bom conceito.
Marcos Florião