Uma família sueca moderna, funcional, convencional e perfeita
na foto: pai, mãe, filha e filho vão passar seis dias de férias esquiando numa
magnífica estação de inverno dos Alpes Franceses. Pura felicidade !? Mas não.
Logo no segundo dia, durante um almoço ao ar-livre em uma das sacadas do
resort, eles vivenciam a ameaça aterrorizante de uma avalanche de neve. É o estopim
para que venham à tona reações e emoções recalcadas, até mesmo inconscientes,
que contradizem as convenções impostas pelos papéis sociais e de gênero, pondo
em cheque a suposta ‘perfeição familiar’ que eles aparentavam.
“Force Majeure” não é um filme sobre catástrofes naturais. Faz
da possibilidade de uma avalanche um gancho metafórico para falar de ‘catástrofes
pessoais’, de ‘avalanches íntimas’, e das repercussões que elas promovem em
nossa vida e nosso entorno. Põe em pauta a existência de certo ‘instinto básico’
que determina nossas atitudes, mesmo contrariando nossa vontade. E nos faz
refletir profundamente ao levantar questões tais como: Que instinto traiçoeiro
é esse que pode nos levar a condutas que vão depois nos envergonhar? Homens e
mulheres reagem diferentemente quando tem que tomar decisões ou assumir
atitudes em situação de risco? Quais são os pontos de vista possíveis sobre um mesmo fato vivido por diversos membros de uma
família numa situação de perigo? Quanto deste fato pode ser reinterpretado, sob um diferente ponto de
vista, para dar conta de uma identificação subjetiva ou de um desejo ou
conceito pré-existente?
Há mais de um século, o velho Freud já nos falava do id, o ‘eu pulsional’,
como uma ‘força maior’ da natureza humana, apesar de invisível, intangível e
mesmo impensável. O id seria apenas deduzível. É numa reação rápida, instintiva,
impensada, tomada numa fração de segundo, onde melhor se pode encontrar o
rastro dessa instância que, de tão internalizada, já nem é mais reconhecida .. Seria
o id capaz de emergir e intervir em nossos destinos, assim como as condições
climáticas da natureza terrestre parecem intervir nos destinos do planeta? Com
suas avalanches, vulcões, terremotos, dilúvios, tsunamis, furacões, aquecimento
global, degelo glacial, big-bangs ..
O filme parece responder que SIM .. Que somos como um
Turista (seu título original) que faz visitas à própria existência, mas de fato não a conhece .. Que lidamos o tempo todo – dentro e fora de nós (mas
principalmente dentro) – com ‘forças maiores’, intenventoras. E que a melhor
maneira de lidar com elas é usando a ‘inteligência dos afetos’ e a ‘união dos
seres’. Esta é a reflexão que nos provoca a última cena do filme, quando o
grupo de passageiros, juntos, toma uma decisão contrária ao motorista do ônibus.
A união deles faz a força, e essa força, sim, é que pode fazer a diferença.
As súbitas atitudes individuais nada mais são que meras
fórmulas ancestrais cristalizadas, e ninguém pode ser julgado ou condenado por elas. É desta
forma – terapêutica – que o filme absolve a suposta “covardia” do pai diante da
ameaça iminente da avalanche. Quem não tiver seus medos que atire a primeira
pedra! Também na cena final, vemos a esposa tomar, diante de outro perigo, a
mesma atitude que tanto criticou no marido o filme inteiro.
Nem vou hoje me estender sobre as qualidades técnicas
do longa, mas duas palavras resumem todos os seus atributos: ‘Tecnicamente Impecável’.
Sublinho apenas um pequeno achado cinematográfico que diz muito sobre o filme.
Repetidamente ele se utiliza de estratégicas cenas sem diálogos, mas de forte
comunicabilidade audiovisual, para sacudir o espectador, como quem diz: “pausa
pra pensar” ou “agora conclua você mesmo”. Nesses momentos ele usa ironicamente
sempre um mesmo trecho musical do ‘Concerto do Verão’ de Antonio Vivaldi. Um
achado !!
“Força Maior” é uma experiência de imersão cinematográfica
ímpar em dois universos paralelamente distintos que se complementam. Num mundo exterior,
único, diferente, branco, gelado, numa estação de esqui nos picos das montanhas
nevadas dos alpes .. E num mundo interior, muito íntimo, no mais
recôndito da alma humana, no choro purificador, no grito libertário, no aconchego
da família, no perdão que só o amor pode alcançar, e transmutar em superação e
heroísmo.
Excelente. Um filme marcante como poucos, filosófico sem pedantismo, surpreendentemente transformador, que no mínimo contribui para ampliar nossa (i)limitada visão do mundo, e de nós mesmos. Recomendado com louvor.
Dario PR