CAMELOS TAMBÉM CHORAM ( 2003 / 93' / Documentário-Drama / The Story of the Weeping Camel ) - por José Roberto de Oliveira



É tudo mentira. E exatamente por ser tudo mentira, é cinema no seu estado mais puro. “Camelos Também Choram” é um filme altamente sofisticado em vários aspectos, fala sobre inúmeros sentimentos, as consequências desses sentimentos no dia-a-dia e o que fazer para compreendê-los e lidar com eles, concreta e imaginariamente.

Trata-se de uma nova fábula, de uma fábula moderna, que em nada fica a dever às do grande Esopo. Uma fábula, como nos ensina o Dicionário do Houaiss, é uma narrativa curta, em prosa ou verso, que tem entre os personagens animais que agem como seres humanos, e que ilustra um preceito moral. Neste caso, a narrativa é cinematográfica, mas não deixa de ser uma fábula porque discorre sobre sentimentos humanos profundos, conteúdos de natureza moral e, entre seus personagens, fazendo parte da história, existem também animais.

Os diretores Byambasuren Davaa (mongol, nascido em 1971 em Ulaambaatar) e Luigi Falorni (italiano, nascido em 1971 em Florença) levaram suas câmeras para o deserto da Mongólia e construíram esse maravilhoso pretenso documentário sobre a intolerância e intransigência personificadas numa camela que renega seu filhote recém-nascido, recusando-se terminantemente a amamentá-lo e a cuidar dele, não se sabe o porquê.

A história gira em torno das hipóteses sobre as causas do acontecimento e da preocupação que o fato desencadeia nos moradores daquele pequeno povoado formado por pastores nômades da Mongólia que tentam, de todas as maneiras, provocar mudanças no comportamento da teimosa Ingen Temee, no trato de seu filhote albino Botok.

Os cineastas nos levam a interpretar muito do que vemos, as ações dos animais, como se fossem causadas por estados de espírito semelhantes a sentimentos humanos, num antropopatismo muito bem elaborado. O “choro” da camela, por exemplo, é uma atribuição de motivações e intenções humanas a animais, no caso, à personagem principal.

A camela desnaturada é linda (e também grande atriz, por sinal, hehehe), engraçada e expressiva como todos os camelos. Seu andar, suas “expressões”, são impagáveis. O avô conta uma história, em determinado momento, para explicar por que os camelos têm aquele olhar perdido no horizonte: é que em tempos primordiais, diz ele, Deus havia presenteado os camelos com vistosos chifres que carregavam com grande orgulho por serem emblemáticos de coisas importantes que os tornaram merecedores daquele presente. Acontece que veados inescrupulosos pediram emprestado os chifres aos camelos e nunca mais os devolveram. É por isso que eles ficam olhando para o horizonte, com aquele olhar tristonho, misto de expectativa e angústia, mascando, na esperança de enxergarem, enfim, os veados que chegarão para lhes devolver seus vistosos chifres.

“The Story of the Weeping Camel” nos mostra um universo totalmente diferente do que estamos habituados, com todas as diferenças físicas e culturais evidentes naquele núcleo familiar formado por três gerações, os avós, os filhos e os netos. Levam uma vida “simples”, porém plena de sentidos e significados. Vemos como se divertem, como trabalham, como se relacionam com a vida no deserto, com a criação de ovelhas e camelos e com a civilização que está distante, mas não muito, com ameaças latentes ao seu modo de vida bucólico, em particular a sedutora e onipresente televisão, que lamentavelmente acabam adquirindo.

A trilha sonora do filme merece um comentário especial. Não existe música incidental. As funções da música no cinema são a de reforçar, ajudar a contar a história, preparar climas, ressaltar determinado acontecimento, antecipar ações, colocar em relevo determinado personagem ou determinada característica dele, entre outras. 

No caso de “Camelos”, a música tem também uma criativa e singela outra função: surge a fim de tentar convencer a pouco maternal camela a cuidar do seu filhote, despertar nela um sentimento escondido ou que não existe. Para isso, os cineastas inventam (apesar de não ser totalmente despropositada a ideia de um ritual assim existir efetivamente) um suposto “ritual tradicional”. Um violinista do vilarejo mais próximo é chamado para realizar, através da música, o que não se conseguiu com diversos outros meios. A ida dos filhos pequenos ao vilarejo, a pequena viagem de camelo que fazem, a busca do músico, sua chegada de moto, os preparativos, o instrumento em si, a música tocada, tudo é muito bem realizado e concatenado.

O filme faz a gente imaginar, quase acreditar, que existem meios possíveis para se lidar com a intolerância e intransigência. Basta que saibamos efetuar os “rituais” certos, tocar nos botões emocionais invisíveis que existem em todos nós seres humanos, e as coisas mudarão para melhor. É uma grande fábula que certamente nos deixa mais felizes ao final da sessão. 

José Roberto C. de Oliveira