É tudo mentira. E exatamente por ser
tudo mentira, é cinema no seu estado mais puro. “Camelos Também Choram” é um
filme altamente sofisticado em vários aspectos, fala sobre inúmeros
sentimentos, as consequências desses sentimentos no dia-a-dia e o que fazer
para compreendê-los e lidar com eles, concreta e imaginariamente.
Trata-se de uma nova fábula, de uma
fábula moderna, que em nada fica a dever às do grande Esopo. Uma fábula, como
nos ensina o Dicionário do Houaiss, é uma narrativa curta, em prosa ou verso,
que tem entre os personagens animais que agem como seres humanos, e que
ilustra um preceito moral. Neste caso, a narrativa é cinematográfica, mas não
deixa de ser uma fábula porque discorre sobre sentimentos humanos profundos,
conteúdos de natureza moral e, entre seus personagens, fazendo parte da
história, existem também animais.
Os diretores Byambasuren Davaa (mongol,
nascido em 1971 em Ulaambaatar) e Luigi Falorni (italiano, nascido em 1971 em
Florença) levaram suas câmeras para o deserto da Mongólia e construíram esse
maravilhoso pretenso documentário sobre a intolerância e intransigência
personificadas numa camela que renega seu filhote recém-nascido, recusando-se terminantemente a amamentá-lo e a cuidar dele, não se sabe o porquê.
A história gira em torno das hipóteses
sobre as causas do acontecimento e da preocupação que o fato desencadeia nos
moradores daquele pequeno povoado formado por pastores nômades da Mongólia que
tentam, de todas as maneiras, provocar mudanças no comportamento da teimosa
Ingen Temee, no trato de seu filhote albino Botok.
Os cineastas nos levam a
interpretar muito do que vemos, as ações dos animais, como se fossem causadas
por estados de espírito semelhantes a sentimentos humanos, num antropopatismo
muito bem elaborado. O “choro” da camela, por exemplo, é uma
atribuição de motivações e intenções humanas a animais, no caso, à personagem principal.
A camela desnaturada é linda (e também
grande atriz, por sinal, hehehe), engraçada e expressiva como todos os camelos. Seu
andar, suas “expressões”, são impagáveis. O avô conta uma história, em
determinado momento, para explicar por que os camelos têm aquele olhar
perdido no horizonte: é que em tempos primordiais, diz ele, Deus havia
presenteado os camelos com vistosos chifres que carregavam com grande orgulho
por serem emblemáticos de coisas importantes que os tornaram merecedores
daquele presente. Acontece que veados inescrupulosos pediram emprestado os
chifres aos camelos e nunca mais os devolveram. É por isso que eles ficam
olhando para o horizonte, com aquele olhar tristonho, misto de expectativa e angústia, mascando, na esperança de enxergarem, enfim, os veados que chegarão para
lhes devolver seus vistosos chifres.
“The Story of the Weeping Camel” nos
mostra um universo totalmente diferente do que estamos habituados, com todas as
diferenças físicas e culturais evidentes naquele núcleo familiar formado por
três gerações, os avós, os filhos e os netos. Levam uma vida “simples”, porém
plena de sentidos e significados. Vemos como se divertem,
como trabalham, como se relacionam com a vida no deserto, com a criação de
ovelhas e camelos e com a civilização que está distante, mas não muito, com
ameaças latentes ao seu modo de vida bucólico, em particular a sedutora e
onipresente televisão, que lamentavelmente acabam adquirindo.
A trilha sonora do filme merece um
comentário especial. Não existe música incidental. As funções da música no
cinema são a de reforçar, ajudar a contar a história, preparar climas,
ressaltar determinado acontecimento, antecipar ações, colocar em relevo
determinado personagem ou determinada característica dele, entre outras.
No
caso de “Camelos”, a música tem também uma criativa e singela outra função: surge a fim de tentar convencer a pouco maternal camela a
cuidar do seu filhote, despertar nela um sentimento escondido ou que não
existe. Para isso, os cineastas inventam (apesar de não ser totalmente
despropositada a ideia de um ritual assim existir efetivamente) um suposto
“ritual tradicional”. Um violinista do vilarejo mais próximo é chamado para
realizar, através da música, o que não se conseguiu com diversos outros meios.
A ida dos filhos pequenos ao vilarejo, a pequena viagem de camelo que fazem, a
busca do músico, sua chegada de moto, os preparativos, o instrumento em si, a
música tocada, tudo é muito bem realizado e concatenado.
O filme faz a gente imaginar, quase
acreditar, que existem meios possíveis para se lidar com a intolerância e
intransigência. Basta que saibamos efetuar os “rituais” certos, tocar nos botões
emocionais invisíveis que existem em todos nós seres humanos, e as coisas
mudarão para melhor. É uma grande fábula que certamente nos
deixa mais felizes ao final da sessão.
José Roberto C. de Oliveira