Uma questão recorrente nas discussões sobre cinema de
não-ficção é a relação entre documentário e jornalismo. Temos cada vez mais
aspectos do documentário no jornalismo televisivo, e do jornalismo no
documentário cinematográfico. Como diferenciá-los? Ou melhor, num mundo onde
ambos dialogam tanto, como isolar as características de cada um, em um
documentário que flerta com jornalismo, ou vice-versa? Espero usar “Citizenfour”
(EUA/2014/doc/114’) como exemplo para demonstrar um ponto de vista acerca desse
assunto.
Primeiramente, o filme trata de um tema que conhecemos
através da mídia, do jornalismo: em 2013, Edward Snowden, funcionário da NSA
(Agência de Segurança Nacional dos EUA), divulgou, com ajuda de repórteres,
diversos documentos sigilosos que revelavam que o governo norte-americano
vinha, já há algum tempo, coletando dados de milhões - talvez bilhões - de
pessoas ao redor do mundo. Esse é o breve resumo do relatado pelos jornalistas
ao longo desses dois anos desde o “surgimento” de Snowden na mídia.
Laura Poitras, a diretora, começa contando que fora contactada
por Snowden, até então usando o pseudônimo Citizenfour, e chamada - junto do
jornalista americano Glenn Greenwald - para uma série de reuniões em Hong Kong,
onde ele estava escondido. Laura foi lá e filmou o documentário em questão.
A cineasta então passa a ser testemunha de um processo
intrinsecamente jornalístico - levar a informação, tão urgente, ao público -
mas não como jornalista, e sim como documentarista. Como? Suponho que Snowden
tivesse conhecimento do trabalho de Laura antes de chamá-la para as reuniões.
Ela chega a mencionar em voz off seus filmes de denúncia sobre a guerra do
Iraque e sobre a prisão de Guantánamo. Ao chamá-la, Snowden, aparentemente o
real idealizador do filme, propõe uma visão sobre o processo. Quando faz isso,
cria a possibilidade do documentário surgir paralelamente ao jornalismo. Laura
quase não aparece nas reuniões, seja em imagem ou som. Ela observa as conversas
entre Snowden e Greenwald para, depois, criar seu ponto de vista. E o que se
segue é um desenrolar de acontecimentos que, através do roteiro - muito ligado
à direção nesse tipo de documentário urgente - ganham um ritmo de descoberta,
característico do documentário e do jornalismo investigativos.
Vamos ao que torna “Citizenfour” essencialmente um documentário,
e tão interessante. Apesar das revelações feitas nas conversas em Hong Kong,
não parece interessar a Laura o caráter das mesmas, mas elas em si. O filme
parece estar focado na figura de Snowden, mesmo - e talvez especialmente -
quando ele diz que não quer ser o centro das atenções. É aí que o filme se
torna único: ele contradiz a revelação do desejo de Snowden, e parece
questioná-lo. A imagem de Snowden, suas reações às reportagens que vê na
televisão do quarto, sua relação com o impacto que os acontecimentos têm em sua
família. É ele o centro. E é sobre esse centro que Laura se debruça. Temos
então a conclusão: os documentos cabem ao jornalismo; a pessoa por trás, e os
bastidores e detalhes do processo, ao documentário. À Laura, que entrega essa
poderosa obra política, cheia de provocações e detalhes acerca de uma das maiores denúncias do século.
“Citizenfour” está indicado ao Oscar 2015 de Melhor
Documentário, e já coleciona uma série de prêmios na temporada, como o BAFTA e
o IDA (Associação Internacional de Documentário).
Pedro de Alencar