DOCUMENTÁRIO X JORNALISMO EM "CITIZENFOUR" - por Pedro de Alencar.



Uma questão recorrente nas discussões sobre cinema de não-ficção é a relação entre documentário e jornalismo. Temos cada vez mais aspectos do documentário no jornalismo televisivo, e do jornalismo no documentário cinematográfico. Como diferenciá-los? Ou melhor, num mundo onde ambos dialogam tanto, como isolar as características de cada um, em um documentário que flerta com jornalismo, ou vice-versa? Espero usar “Citizenfour” (EUA/2014/doc/114’) como exemplo para demonstrar um ponto de vista acerca desse assunto.

Primeiramente, o filme trata de um tema que conhecemos através da mídia, do jornalismo: em 2013, Edward Snowden, funcionário da NSA (Agência de Segurança Nacional dos EUA), divulgou, com ajuda de repórteres, diversos documentos sigilosos que revelavam que o governo norte-americano vinha, já há algum tempo, coletando dados de milhões - talvez bilhões - de pessoas ao redor do mundo. Esse é o breve resumo do relatado pelos jornalistas ao longo desses dois anos desde o “surgimento” de Snowden na mídia.

Laura Poitras, a diretora, começa contando que fora contactada por Snowden, até então usando o pseudônimo Citizenfour, e chamada - junto do jornalista americano Glenn Greenwald - para uma série de reuniões em Hong Kong, onde ele estava escondido. Laura foi lá e filmou o documentário em questão.

A cineasta então passa a ser testemunha de um processo intrinsecamente jornalístico - levar a informação, tão urgente, ao público - mas não como jornalista, e sim como documentarista. Como? Suponho que Snowden tivesse conhecimento do trabalho de Laura antes de chamá-la para as reuniões. Ela chega a mencionar em voz off seus filmes de denúncia sobre a guerra do Iraque e sobre a prisão de Guantánamo. Ao chamá-la, Snowden, aparentemente o real idealizador do filme, propõe uma visão sobre o processo. Quando faz isso, cria a possibilidade do documentário surgir paralelamente ao jornalismo. Laura quase não aparece nas reuniões, seja em imagem ou som. Ela observa as conversas entre Snowden e Greenwald para, depois, criar seu ponto de vista. E o que se segue é um desenrolar de acontecimentos que, através do roteiro - muito ligado à direção nesse tipo de documentário urgente - ganham um ritmo de descoberta, característico do documentário e do jornalismo investigativos.

Vamos ao que torna “Citizenfour” essencialmente um documentário, e tão interessante. Apesar das revelações feitas nas conversas em Hong Kong, não parece interessar a Laura o caráter das mesmas, mas elas em si. O filme parece estar focado na figura de Snowden, mesmo - e talvez especialmente - quando ele diz que não quer ser o centro das atenções. É aí que o filme se torna único: ele contradiz a revelação do desejo de Snowden, e parece questioná-lo. A imagem de Snowden, suas reações às reportagens que vê na televisão do quarto, sua relação com o impacto que os acontecimentos têm em sua família. É ele o centro. E é sobre esse centro que Laura se debruça. Temos então a conclusão: os documentos cabem ao jornalismo; a pessoa por trás, e os bastidores e detalhes do processo, ao documentário. À Laura, que entrega essa poderosa obra política, cheia de provocações e detalhes acerca de uma das maiores denúncias do século. 

Citizenfour” está indicado ao Oscar 2015 de Melhor Documentário, e já coleciona uma série de prêmios na temporada, como o BAFTA e o IDA (Associação Internacional de Documentário).


Pedro de Alencar