MEUS DOIS AMORES ( 2012 / Brasil / Comédia / 86’ / 12a ), de Luiz Henrique Rios - por José Roberto de Oliveira.

“O arraial era o mais monótono possível. Logo na chegada, ansioso por conversa à beira do fogo, desafios com viola, batuques e cavalhadas, procurei, procurei, e quebrei a foice. As noites, principalmente, impressionavam. Casas no escuro, rua deserta. Raro, o pataleio de um cavalo no cascalho. O responso pluralíssimo dos sapos. Um só latido, mágico, feito por muitos cachorros remotos. Grilos finfininhos e bezerros fonfonando. E pronto.”

Trecho de ‘Corpo Fechado’, conto de ‘Sagarana’ (1946), primeiro livro de Guimarães Rosa.


O título já conta a história do filme: um sujeito oscila entre dois amores, uma linda morena e uma bela mula. Ele não quer se desfazer de nenhuma das exigentes criaturas que o atormentam com suas crises de ciúme. O desenrolar desse ménage à trois é o fio condutor da trama. Manuel não consegue deixar de lado a mula Beija-Fulô, como reclama a urgente noiva ciumenta (Das Dô) para se casar, mas também não consegue acabar o noivado como desejaria a mula com seu engraçado e carente zurro.  Como pano de fundo, as histórias de valentia e feitiçaria contadas pelo povinho do arraial em seus encontros na venda local.

Um belo filme brasileiro, com temática universal, uma comédia bem feita, que se passa num povoado de uma zona rural de Minas Gerais. Um causo mineiro transcrito para o cinema. Estão lá muitos dos aspectos culturais dessa inspiradora Minas campestre: o bravateiro que conta vantagens (Manuel, o protagonista), o valentão malvado (Targino), a morena bonita (Das Dô), os coronéis, a venda, onde os habitantes do Arraial de Laginha se encontram, a dona da venda, grande coadjuvante, o sotaque, o padre com a força da igreja competindo com a crença nos poderes do sobrenatural e em seu representante, o feiticeiro (Toniquinho das Pedras), com suas feitiçaria premonitória e o jeito peculiar de fazer sua mandinga. O sotaque outra vez, puro de caipirice, engraçado, inteligente, preguiçoso, do legítimo mineiro matreiro, come-quieto, desconfiado. Tudo amalgamado pela excelente trilha sonora, também mineira da gema, com música tema de Milton Nascimento arranjada e interpretada por outro grande cantor, Lenine, que a reorientou ao espírito da comédia de costumes.

Um espectador erudito, ranzinza, com prováveis cólicas de fígado ao sair do cinema, entregue às enxaquecas puristas, classificatórias, ideológicas, poderia decretar entredentes: “enterraram Guimarães Rosa na cova rasa da TV Globo”. Por que fizeram isso? Eu responderia que por dois motivos:

(1) A linguagem televisiva dá certo, vende bem, o povo já a entendeu, já aprendeu a gostar desse jeito de contar uma história, desse conjunto de plano/contra-plano, de cortes secos, de luz difusa, de música ilustrativa, de paisagens brasileiras essenciais, que se acostumou a ver nas novelas. A história é de uma brasilidade impar, guimarãesroseana. Esse é o ponto principal. Melhor usar essa estrutura formal - vinda da TV - num conto de raiz, do que em qualquer outra novidade simplória. A pergunta principal: é bom que mais gente entre em contato com um autor desse porte, sofisticado, erudito, precursor, difícil, que talvez nunca chegasse a ser lido se não fosse apresentado numa língua mais compreensível, atenuada, mas que mantém o sabor da coisa em si? Isso é uma fonte eterna de discussão, eu sei. Mas que existe aqui uma semente muito valiosa, culturalmente falando, também é verdade.

Ora, ter público pode ser um atributo indispensável a um filme, mais ainda no Brasil de hoje, com essa indústria cinematográfica mequetrefe. Este daqui teve como um dos patrocinadores a Petrobrás, vejam só! O pouco do dinheiro que sobrou veio pra cá; há que se utilizar, portanto, uma estética conhecida e aclamada, que possibilite vender alguma coisa de qualidade. O espectador mediano não aguenta o experimentalismo formal e de conteúdo dos filmes de autor. E, quando quiser e puder, quando cair a ficha da alta cultura, pode ir ao panteão ler o conto original do mestre. Por outro lado, mesmo que se quisesse...

(2) É muito difícil transpor para a linguagem cinematográfica a profundidade atingida por Guimarães Rosa na prosa escrita. Basta ler-se um trecho do conto que deu origem ao filme, “Corpo Fechado” do livro Sagarana de 1946, pra se ter ideia do desafio que é a passagem de uma linguagem à outra. Às vezes para “amarrar” uma situação é preciso se inventar um personagem que não existia, ou desconsiderar outro que era importante no conto etc. É por isso que existe o roteirista e que o autor do texto a ser transmutado recusa-se, no mais das vezes, a recriá-lo para o cinema; recusa-se a macular o que lhe deu tanto trabalho para realizar.

No caso, o que aqui se fez foi passar para primeiro plano a história que no conto ocupava o pano de fundo. O enfoque de “Corpo Fechado” era no mistério, no misticismo, no feitiço, na luta do bem contra o mal; e o protagonista precisava ter o ‘corpo fechado’ para ganhá-la. Já o foco principal de “Meus Dois Amores” está na historinha de amor. Mas o filme é divertido, é bom, vale ser visto.

Leiam se possível o conto original – tanto faz se antes ou depois do filme – para poder comparar melhor a mesma brasilidade vista na arquibancada, pelo longa, e no campo profundo do Brasil, pelo conto.

“Grilos finfininhos e bezerros fonfonando. E pronto”... 
Como transformar isso em filme, sô? Oras...


José Roberto de Oliveira