“O arraial era o mais monótono possível. Logo na chegada, ansioso por conversa à beira do fogo, desafios com viola, batuques e cavalhadas, procurei, procurei, e quebrei a foice. As noites, principalmente, impressionavam. Casas no escuro, rua deserta. Raro, o pataleio de um cavalo no cascalho. O responso pluralíssimo dos sapos. Um só latido, mágico, feito por muitos cachorros remotos. Grilos finfininhos e bezerros fonfonando. E pronto.”
Trecho de ‘Corpo Fechado’, conto de ‘Sagarana’ (1946),
primeiro livro de Guimarães Rosa.
O título já conta a história do filme: um sujeito oscila entre dois amores, uma linda morena e uma bela mula.
Ele não quer se desfazer de nenhuma das exigentes criaturas que o atormentam
com suas crises de ciúme. O desenrolar desse ménage à trois é o fio condutor da trama. Manuel não consegue
deixar de lado a mula Beija-Fulô, como reclama a urgente noiva ciumenta (Das Dô)
para se casar, mas também não consegue acabar o noivado como desejaria a mula
com seu engraçado e carente zurro. Como
pano de fundo, as histórias de valentia e feitiçaria contadas pelo povinho do
arraial em seus encontros na venda local.
Um belo filme brasileiro, com
temática universal, uma comédia bem feita, que se passa num povoado de uma zona
rural de Minas Gerais. Um causo mineiro transcrito para o cinema. Estão lá
muitos dos aspectos culturais dessa inspiradora Minas campestre: o bravateiro que
conta vantagens (Manuel, o protagonista), o valentão malvado (Targino), a
morena bonita (Das Dô), os coronéis, a venda, onde os habitantes do Arraial de
Laginha se encontram, a dona da venda, grande coadjuvante, o sotaque, o padre
com a força da igreja competindo com a crença nos poderes do sobrenatural e em
seu representante, o feiticeiro (Toniquinho das Pedras), com suas feitiçaria
premonitória e o jeito peculiar de fazer sua mandinga. O sotaque outra vez,
puro de caipirice, engraçado, inteligente, preguiçoso, do legítimo mineiro
matreiro, come-quieto, desconfiado. Tudo amalgamado pela excelente trilha
sonora, também mineira da gema, com música tema de Milton Nascimento arranjada
e interpretada por outro grande cantor, Lenine, que a reorientou ao espírito da comédia de costumes.
Um espectador erudito,
ranzinza, com prováveis cólicas de fígado ao sair do cinema, entregue às
enxaquecas puristas, classificatórias, ideológicas, poderia decretar
entredentes: “enterraram Guimarães Rosa na cova rasa da TV Globo”. Por que
fizeram isso? Eu responderia que por dois motivos:
(1) A linguagem televisiva dá
certo, vende bem, o povo já a entendeu, já aprendeu a gostar desse jeito de
contar uma história, desse conjunto de plano/contra-plano, de cortes secos, de
luz difusa, de música ilustrativa, de paisagens brasileiras essenciais, que se
acostumou a ver nas novelas. A história é de uma brasilidade impar, guimarãesroseana.
Esse é o ponto principal. Melhor usar essa estrutura formal - vinda da TV - num
conto de raiz, do que em qualquer outra novidade simplória. A pergunta principal:
é bom que mais gente entre em contato com um autor desse porte, sofisticado,
erudito, precursor, difícil, que talvez nunca chegasse a ser lido se não fosse apresentado
numa língua mais compreensível, atenuada, mas que mantém o sabor da coisa em
si? Isso é uma fonte eterna de discussão, eu sei. Mas que existe aqui uma semente
muito valiosa, culturalmente falando, também é verdade.
Ora, ter público pode ser um
atributo indispensável a um filme, mais ainda no Brasil de hoje, com essa
indústria cinematográfica mequetrefe. Este daqui teve como um dos patrocinadores
a Petrobrás, vejam só! O pouco do dinheiro que sobrou veio pra cá; há que se
utilizar, portanto, uma estética conhecida e aclamada, que possibilite vender
alguma coisa de qualidade. O espectador mediano não aguenta o experimentalismo
formal e de conteúdo dos filmes de autor. E, quando quiser e puder, quando cair
a ficha da alta cultura, pode ir ao panteão ler o conto original do mestre. Por
outro lado, mesmo que se quisesse...
(2) É muito difícil transpor
para a linguagem cinematográfica a profundidade atingida por Guimarães Rosa na prosa
escrita. Basta ler-se um trecho do conto que deu origem ao filme, “Corpo Fechado”
do livro Sagarana de 1946, pra se ter ideia do desafio que é a passagem de uma
linguagem à outra. Às vezes para “amarrar” uma situação é preciso se inventar um
personagem que não existia, ou desconsiderar outro que era importante no conto etc.
É por isso que existe o roteirista e que o autor do texto a ser transmutado
recusa-se, no mais das vezes, a recriá-lo para o cinema; recusa-se a macular o
que lhe deu tanto trabalho para realizar.
No caso, o que aqui se fez foi
passar para primeiro plano a história que no conto ocupava o pano de fundo. O enfoque
de “Corpo Fechado” era no mistério, no misticismo, no feitiço, na luta do bem
contra o mal; e o protagonista precisava ter o ‘corpo fechado’ para ganhá-la. Já
o foco principal de “Meus Dois Amores” está na historinha de amor. Mas o filme é
divertido, é bom, vale ser visto.
Leiam se possível o conto
original – tanto faz se antes ou depois do filme – para poder comparar melhor a
mesma brasilidade vista na arquibancada, pelo longa, e no campo profundo do
Brasil, pelo conto.
“Grilos finfininhos
e bezerros fonfonando. E pronto”...
Como transformar isso em filme, sô?
Oras...
José Roberto de Oliveira