“Há quem mate os leões, admiro-os; porém prefiro
aqueles que os domam.
Os leões passam, assim como os reis e as florestas.”
(Gérard
de Nerval)
Aquele vão de espaço mais conhecido como cenário, com todo o preenchimento da
direção de arte, objetos de cena, equilíbrio cenográfico ou qualquer um dos
artifícios e aparatos de uma obra fílmica, aqui se esgota. Nada mais resta a
não ser um espaço nu com duas atrizes onde impera a escuridão.
Surge então um relicário arquitetural de
sombras, reinando uma harmonia noturna delineada numa imensidão sem fim. Um
verdadeiro buraco negro de melodias noturnas. Algo pensado, condensado e
tateado às cegas pela destreza, rigor e pulso do diretor, fazendo assim abrirem-se
as fendas de um palco infinito, clareando infinitas possibilidades. Daí vem
aquele perigo, uma espécie de labirinto velado – à espreita – que murmura
sentenciando a escolha de um take.
Basta uma cena com intuito requintado,
propositalmente feita para arrancar grandes aplausos de uma plateia, que facilmente
a obra verte-se no abismo deletério de uma próxima sequência sem saída. Nisso
consiste a dureza do simplório ambiente estruturado pelo diretor Luiz Rosemberg
Filho.
No início esboça-se algo de uma estranheza
única onde duas mulheres trajadas de um luto quase ritualístico, mais se
assemelhando a uma ceita ocultista, preparam a personagem Carminha, personificada
por Patrícia Niedermeier. Ao porte marmóreo de uma “Vênus decaída”, ela se
reveste de suas indumentárias e apetrechos, revelando quadros que vingam como a
iniciação mágica de um voodoo matrimonial. Jandira – vivida por Ana Abbott – em sua
truncada inocência nada pueril, está prestes a se casar, porém ninguém aparece
no maldito cerimonial a não ser outra noiva, a própria Carminha.
Os corpos femininos geograficamente
mapeados, entranhados da mácula bestial do “poder” contida no discurso das
personagens, onde esperanças mutiladas, argumentos degradados e dialéticas extenuadas
vão desvanecendo-se pouco a pouco na sede existencialista extática – comungada
em pequenas doses – de uma eterna noite vivida naquele local. Num tácito desespero
de fúria afetiva tudo recomeça, novamente às avessas e assim, em trocas
serenadas, entrelaçando confidências, sublevando o brilho do indivíduo; a potência
do ser amoroso acaba por prevalecer como força natural. Numa espécie de transmutação
elementar, os diálogos petrificados de antes se moldam em prosas sutis
desveladas aos afetos e vínculos poeticamente emotivos.
Como dizia William
Blake, “a cisterna contém e a fonte transborda”, e assim no decorrer do filme
existem pontos nos quais o contingente emocional de toda estrutura é despertado,
fragmentando delicadamente a estética em lapsos de tempo. E uma multidão de
signos carregados irrompem numa valsa rodeada por atos, reintegrando os corpos
num todo universal embevecido, torrencialmente embriagado, sublimando nossas
personagens a uma nova aurora, e magnetizando o olhar do espectador que vai sendo conduzido com maestria pelo cineasta.
Ana Abbot e Patrícia Niedermeier viveram
mais do que a personificação recíproca de duas atrizes. Num filme dessa estirpe,
há uma transmigração de almas entre atores de qualidade. Entre as duas, essa alquimia
eclode da compreensão da proposta do diretor, do tato, do esboço, de falharem
juntas, de trocarem juntas, dando forma a Jandira e Carminha. Num processo
demorado e demasiadamente humano, lindamente humano, fez-se erguer o campanário
cênico ideal, resultado da união viva e atemporal de duas personagens.
Ao longo desse processo de preparação, Luiz
Rosemberg Filho, um humanista nato, um dos últimos de uma espécie de diretores
que o cinema já não mais reinventa, esteve sempre à espreita, acolhendo
invariavelmente o que suas atrizes tinham a dizer, sem qualquer imposição hierárquica
direta. Tudo contemplava, tudo refletia e organicamente se doava sem
restrições, sedimentando assim mais uma de suas obras. (Alguns chamam seu
coletivo fílmico de “Cinema do Afeto”.) A meu ver, “Dois Casamentos” é apenas consequência
de uma meta por demais sublime, impossível, inacessível; um tipo de conduta estética
que não precisa ser aplaudida, já que o próprio cineasta a carrega em vida de forma
tombada, como um tratado. Um fado.
Pedro Azevedo