DOIS CASAMENTOS ( 2014 / Brasil / RJ / Ficção / 70’ / 14a ), de Luiz Rosemberg Filho - por Pedro Azevedo


“Há quem mate os leões, admiro-os; porém prefiro aqueles que os domam. 
Os leões passam, assim como os reis e as florestas.” 
(Gérard de Nerval) 

Aquele vão de espaço mais conhecido como cenário, com todo o preenchimento da direção de arte, objetos de cena, equilíbrio cenográfico ou qualquer um dos artifícios e aparatos de uma obra fílmica, aqui se esgota. Nada mais resta a não ser um espaço nu com duas atrizes onde impera a escuridão.


Surge então um relicário arquitetural de sombras, reinando uma harmonia noturna delineada numa imensidão sem fim. Um verdadeiro buraco negro de melodias noturnas. Algo pensado, condensado e tateado às cegas pela destreza, rigor e pulso do diretor, fazendo assim abrirem-se as fendas de um palco infinito, clareando infinitas possibilidades. Daí vem aquele perigo, uma espécie de labirinto velado – à espreita – que murmura sentenciando a escolha de um take.

Basta uma cena com intuito requintado, propositalmente feita para arrancar grandes aplausos de uma plateia, que facilmente a obra verte-se no abismo deletério de uma próxima sequência sem saída. Nisso consiste a dureza do simplório ambiente estruturado pelo diretor Luiz Rosemberg Filho.


No início esboça-se algo de uma estranheza única onde duas mulheres trajadas de um luto quase ritualístico, mais se assemelhando a uma ceita ocultista, preparam a personagem Carminha, personificada por Patrícia Niedermeier. Ao porte marmóreo de uma “Vênus decaída”, ela se reveste de suas indumentárias e apetrechos, revelando quadros que vingam como a iniciação mágica de um voodoo matrimonial. Jandira – vivida por Ana Abbott – em sua truncada inocência nada pueril, está prestes a se casar, porém ninguém aparece no maldito cerimonial a não ser outra noiva, a própria Carminha.

Os corpos femininos geograficamente mapeados, entranhados da mácula bestial do “poder” contida no discurso das personagens, onde esperanças mutiladas, argumentos degradados e dialéticas extenuadas vão desvanecendo-se pouco a pouco na sede existencialista extática – comungada em pequenas doses – de uma eterna noite vivida naquele local. Num tácito desespero de fúria afetiva tudo recomeça, novamente às avessas e assim, em trocas serenadas, entrelaçando confidências, sublevando o brilho do indivíduo; a potência do ser amoroso acaba por prevalecer como força natural. Numa espécie de transmutação elementar, os diálogos petrificados de antes se moldam em prosas sutis desveladas aos afetos e vínculos poeticamente emotivos. 

Como dizia William Blake, “a cisterna contém e a fonte transborda”, e assim no decorrer do filme existem pontos nos quais o contingente emocional de toda estrutura é despertado, fragmentando delicadamente a estética em lapsos de tempo. E uma multidão de signos carregados irrompem numa valsa rodeada por atos, reintegrando os corpos num todo universal embevecido, torrencialmente embriagado, sublimando nossas personagens a uma nova aurora, e magnetizando o olhar do espectador que vai sendo conduzido com maestria pelo cineasta.


Ana Abbot e Patrícia Niedermeier viveram mais do que a personificação recíproca de duas atrizes. Num filme dessa estirpe, há uma transmigração de almas entre atores de qualidade. Entre as duas, essa alquimia eclode da compreensão da proposta do diretor, do tato, do esboço, de falharem juntas, de trocarem juntas, dando forma a Jandira e Carminha. Num processo demorado e demasiadamente humano, lindamente humano, fez-se erguer o campanário cênico ideal, resultado da união viva e atemporal de duas personagens.

Ao longo desse processo de preparação, Luiz Rosemberg Filho, um humanista nato, um dos últimos de uma espécie de diretores que o cinema já não mais reinventa, esteve sempre à espreita, acolhendo invariavelmente o que suas atrizes tinham a dizer, sem qualquer imposição hierárquica direta. Tudo contemplava, tudo refletia e organicamente se doava sem restrições, sedimentando assim mais uma de suas obras. (Alguns chamam seu coletivo fílmico de “Cinema do Afeto”.) A meu ver, “Dois Casamentos” é apenas consequência de uma meta por demais sublime, impossível, inacessível; um tipo de conduta estética que não precisa ser aplaudida, já que o próprio cineasta a carrega em vida de forma tombada, como um tratado. Um fado.


Pedro Azevedo