ACIMA DAS NUVENS ( 2014 / Drama / França-Suíça / Clouds of Sils Maria / 124’ / 14a ) de Olivier Assayas - por Marcos Florião.


O diretor e roteirista francês Olivier Assayas tem uma obra camaleônica. Parece se deliciar com o desafio de enfrentar gêneros, logísticas, elencos, temas e propostas bastante díspares. É uma verdadeira salada russa comparar títulos como “Irma Vep”, “Fin Août, Début Septembre”(Termina Agosto, Começa Setembro, inédito aqui), “Demonlover”, o belíssimo “L’Heure d’Éte”(Horas de Verão) e os politizados “Carlos” e “Depois de Maio”.

Acertando ou errando, desde sempre temos um realizador de extrema habilidade no domínio de sua técnica – entre muitas outras, as tomadas no avião em “Demonlover” são magníficas ! –, que alcança agora o pleno equilíbrio e mestria neste “Clouds of Sils Maria” (Acima das Nuvens).

Em seu projeto mais intimista, estamos diante de um dilema envolvendo a consagrada atriz Maria Enders (a inigualável Juliette Binoche) e sua jovem assistente Valentina (Kristen Stewart). Desde logo sabemos da hesitação da atriz em aceitar representar novamente a peça de sucesso que lançou sua carreira,“Maloja Snake” – título que remete ao fenômeno de nuvens serpenteando grupos de colinas na Suíça –, na qual fazia a personagem ‘Sigrid’, uma jovem em confronto com a quarentona ‘Helena’. Desta vez, vinte anos decorridos, Maria precisará ser ‘Helena’. Caberá a um jovem e bem sucedido diretor teatral convencê-la a aceitar e empreitada.

Imersa em sua hesitação – e em deliciosa decisão de roteiro –, Maria repetirá atitudes ou ímpetos do tempo em que foi Sigrid. Enfrentará situações similares, a principal destas é sua relação com Valentina, que Assayas escamoteia de forma provocante, nos induzindo a especulações diversas.

A trama caminha de forma impecável, seja na primorosa estética seja no instigante e inevitável trâmite que levará Maria e Valentina a um verdadeiro calvário mútuo. A certa altura, durante os ensaios domésticos entre elas – como Maria aprecia fazer para avaliar inclusive seu íntimo –, ficamos confundidos se estão a dialogar Helena & Sigrid ou Maria & Valentina (ou ambas as hipóteses). Estabelece-se então um intenso jogo existencialista onde Maria Enders se verá obrigada a assumir e se travestir no que já é, porém não deseja: ela mesma. Ou ‘Helena’. Ou partes de ‘Helena’...

Não estou a estragar surpresa aqui, leitor: logo no terço inicial sabemos da enrascada que Maria criou para si mesma, uma arapuca existencial. Uma notável sequência de diálogos e situações vai pontuando a narrativa, num estilo que por vezes lembra “Persona”, de Ingmar Bergman. A diferença básica aqui está no conflito íntimo das protagonistas: enquanto a ilustre Liv Ullmann fazia uma atriz angustiada, sobretudo a partir do aspecto sócio-político, a da Juliette está assediada pela fantasmagoria afetiva/sexual. E por diversas vezes o campo da identificação e interchange entre elas exige a tensão máxima de suas forças. No mais, recomendo ao espectador plena atenção à linha mestra da trama, mesclando o contato Maria & Valentina ao dilema íntimo da atriz consagrada, o de lidar com a impiedosa passagem do tempo e as consequências naturais disso.

Ao habitual show de representação e luminosos sorrisos, Juliette Binoche acrescenta uns cinco novos ao arsenal, ancorada de forma tão surpreendente quanto brilhante por Kristen Stewart. A tocada de Assayas traz sucessivos e maravilhosos fades, que afora delicadíssimos deixam a nós espaço para a devida intriga e elaboração. O fotógrafo Yorick Le Saux acerta em cheio, tanto nas tomadas fechadas e escuras quanto nas belíssimas paisagens das externas, assim como nas ilusórias transparências dos planos finais.

Obra-prima absoluta.

Marcos Florião