O diretor e roteirista francês Olivier Assayas tem uma obra
camaleônica. Parece se deliciar com o desafio de enfrentar gêneros, logísticas,
elencos, temas e propostas bastante díspares. É uma verdadeira salada russa comparar títulos como “Irma Vep”, “Fin Août, Début Septembre”(Termina Agosto, Começa Setembro, inédito
aqui), “Demonlover”, o belíssimo “L’Heure d’Éte”(Horas de Verão) e os politizados
“Carlos” e “Depois de Maio”.
Acertando ou errando, desde sempre temos um realizador de
extrema habilidade no domínio de sua técnica – entre muitas outras, as tomadas
no avião em “Demonlover” são magníficas ! –, que alcança agora o pleno equilíbrio
e mestria neste “Clouds of Sils Maria” (Acima das Nuvens).
Em seu projeto mais intimista, estamos diante de um dilema envolvendo
a consagrada atriz Maria Enders (a inigualável Juliette Binoche) e sua jovem
assistente Valentina (Kristen Stewart). Desde logo sabemos da hesitação da
atriz em aceitar representar novamente a peça de sucesso que lançou sua
carreira,“Maloja Snake” – título que remete ao fenômeno de nuvens serpenteando
grupos de colinas na Suíça –, na qual fazia a personagem ‘Sigrid’, uma jovem em
confronto com a quarentona ‘Helena’. Desta vez, vinte anos decorridos, Maria
precisará ser ‘Helena’. Caberá a um jovem e bem sucedido diretor teatral
convencê-la a aceitar e empreitada.
Imersa em sua hesitação – e em deliciosa decisão de roteiro –,
Maria repetirá atitudes ou ímpetos do tempo em que foi Sigrid. Enfrentará situações similares, a principal destas é sua
relação com Valentina, que Assayas escamoteia de forma provocante, nos
induzindo a especulações diversas.
A trama caminha de forma impecável, seja na primorosa estética seja no instigante e inevitável
trâmite que levará Maria e Valentina a um verdadeiro calvário mútuo. A certa
altura, durante os ensaios domésticos entre elas – como Maria aprecia fazer
para avaliar inclusive seu íntimo –, ficamos confundidos se estão a dialogar
Helena & Sigrid ou Maria & Valentina (ou ambas as hipóteses). Estabelece-se
então um intenso jogo existencialista onde Maria Enders se verá obrigada a
assumir e se travestir no que já é, porém não deseja: ela mesma. Ou ‘Helena’. Ou
partes de ‘Helena’...
Não estou a estragar surpresa aqui, leitor: logo no terço
inicial sabemos da enrascada que Maria criou para si mesma, uma arapuca
existencial. Uma notável sequência de diálogos e situações vai pontuando a
narrativa, num estilo que por vezes lembra “Persona”, de Ingmar Bergman. A
diferença básica aqui está no conflito íntimo das protagonistas: enquanto a
ilustre Liv Ullmann fazia uma atriz angustiada, sobretudo a partir do aspecto sócio-político, a
da Juliette está assediada pela fantasmagoria afetiva/sexual. E por diversas
vezes o campo da identificação e interchange
entre elas exige a tensão máxima de suas forças. No mais, recomendo ao
espectador plena atenção à linha mestra da trama, mesclando o contato Maria
& Valentina ao dilema íntimo da atriz consagrada, o de lidar com a
impiedosa passagem do tempo e as consequências naturais disso.
Ao habitual show de representação e luminosos sorrisos, Juliette
Binoche acrescenta uns cinco novos ao arsenal, ancorada de forma tão
surpreendente quanto brilhante por Kristen Stewart. A tocada de Assayas traz sucessivos
e maravilhosos fades, que afora delicadíssimos deixam a nós espaço para a
devida intriga e elaboração. O fotógrafo Yorick Le Saux acerta em cheio, tanto
nas tomadas fechadas e escuras quanto nas belíssimas paisagens das externas,
assim como nas ilusórias transparências dos planos finais.
Obra-prima absoluta.
Marcos Florião