Leviatã (2014 / Rússia / ficção / Leviafan), utiliza de
maneira eficaz referências como a religião, e a formulação do filósofo e cientista
político Thomas Hobbes. O filme trilha o caminho da crítica política, e faz vir
à tona a Rússia de Putin, e expurga – ou tenta, seus leviatãs do passado. Ele
faz piada em vários momentos da dor, da sua própria amargura; o filme é
salpicado de um humor dorido. Diga-se de passagem, um humor ácido e sóbrio.
E capricha nisso. Um ponto alto desse (como bem disse meu amigo
Enic Cine com quem assisti) “humor da dor” é a cena do tiro ao alvo. E os alvos
dos tiros e do deboche são os líderes do passado: Lenin, Trotsky...
A certa altura, um clérigo da igreja maronita, cita um trecho
da bíblia - precisamente do livro de Jó, para ilustrar que ao confrontar o
LEVIATHAN, não se escapa ileso. E a ele não se derrota. E vemos então, o
personagem Kolya altercar com a inveja, na luta por e contra a riqueza,
segurança e gloria que são os estados naturais do ser humano, segundo Hobbes.
Não à toa, o filme foi rodado em um lugar aparentemente desprovido de
civilização, de qualquer vestígio de indústria, exatamente para acentuar a
condição em que Hobbes coloca o homem dentro da sua formulação política.
Não à toa, um dos mais belos planos é o do personagem Roma
que sai correndo em prantos, para e senta numa rocha ao lado da ossada de uma
baleia. A propósito, essa fotografia serve muito apropriadamente para ilustrar o
cartaz do filme. Este momento é a síntese das duas referências às quais o filme
lança mão – a bíblica, onde a baleia é uma das formas representativas do
Leviathan, e a alegórica, do garoto que chora simbolizando uma nova geração que
quer declarar guerra a esse poder centralizador, que não quer mais outorgar seus
direitos – mas se ressente, porque é perigoso, é doloroso, é exaustivo. Essa
dor que o Roma chora, é a dor da luta travada pelo herói do filme - Kolya - seu
pai, que gradativamente percebe essa realidade. Por fim, essa ossada da baleia,
que nos fala do velho poder – do arcaico, talvez uma imagem emblemática da
esperança em derrotar o Leviatã.
Ao que parece o único alívio é o álcool. Costuma-se dizer por
aqui nessas paragens, que a cachaça é a terapia do povo – pois bem, que seja,
com a diferença que lá na Rússia se bebe vodca. Há várias cenas em que os personagens,
digamos assim, passam das medidas na ingestão etílica, e tais cenas merecem
especial atenção do espectador, pois a direção forte de Andrey Zvyagintsev
confere um suporte vigoroso às brilhantes atuações.
A religião e a política andam de mãos dadas e dedos
entrelaçados em cada fotograma. Os momentos em que o prefeito aparece
conversando com o patriarca da igreja maronita, e o da liturgia na cena da
missa, onde a câmera passeia por entre a assistência captando as expressões
extasiadas no deleite da homilia, ressaltam a mensagem de que “a guerra de
todos contra todos” - frase de Hobbes, está muito bem articulada nessa obra
russa.
Um filme denso, mas que soube expurgar seu Wladimir Putin,
sua Rússia dos dias atuais. Merecidamente está entre os cincos indicados ao
Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em 2015.
Carmem Cortez